Claire não conseguiu dormir nem por um minuto sequer. Seus pensamentos estavam a mil e seu coração não parava de doer como se um pedaço dele houvesse sido arrancado, deixando apenas um vazio tão doloroso que parecia capaz de fazê-la sufocar. Em compensação, Lilian dormia como uma pedra. Tão profundamente que Claire começou a se perguntar o quão forte havia sido o golpe de August.
Quando os primeiros raios do sol atravessaram as frestas da janela, Claire sentou-se na cama e começou uma luta com todo o turbilhão de emoções que estava sentindo para conseguir parar de chorar. Levantou-se, colocou um vestido limpo e lavou o rosto para que não ficasse tão óbvio que havia passado a noite em claro, chorando. Ensaiou sorrisos falsos em frente ao espelho, mas eram falsos demais, não conseguia sorrir. Até podia tentar ser forte como August pedira e mentir para proteger sua família, mas sorrir não era capaz, não quando sentia tanta tristeza e lágrimas implorando passagem em seus olhos.
— Seja forte. Seja forte. Faça como August pediu e salve a Lili.— disse ao rosto que a encarava do outro lado do espelho.
Voltou para o quarto e esperou mais um pouco antes de acordar Lilian e ir a casa dos vizinhos, só torcia para que Johan, o filho do meio dos Baptiste, não estivesse lá. Claire não gostava dele, Lilian menos ainda, ele havia pedido a mão dela um pouco antes de August tomar coragem para revelar como se sentia sobre sua amiga de infância. A questão é que o pai das garotas preferiu August a Johan, embora a filha não quisesse nenhum dos dois, e Johan era arrogante demais para ouvir um "não" como resposta e aceitar facilmente, nunca desistira de casar-se Lilian e infernizar a vida de August era seu novo hobbie.Claire encarou o rosto ainda adormecido da irmã. Tão calma. E respirou profundamente, tomando coragem para chamá-la e contar a primeira mentira.
— Lili, Lili acorda. — ela balançou a irmã na cama — A vovó ainda não voltou...— continuou mexendo o corpo de Lilian, na tentativa de acordá-la. — Lilian, por favor, acorda. — Que foi? — Lilian indagou, sonolenta. A mão indo de encontro a cabeça, onde havia sido atingida.
— A vovó ainda não voltou. Desde a noite passada.
— Que? A vovó...?
— Ela foi buscar água no rio ontem a noite e ainda não voltou. Você não lembra? Ficamos esperando por ela, mas aí você dormiu tão rápido que mais parecia ter desmaiado. — Ela torcia para que os verdadeiros acontecimentos da noite passada não passassem de vacuous na mente da irmã e que Lilian acreditasse naquela história.
— Eu não lembro. Minha cabeça está doendo. — Lilian tentou levantar-se, mas o movimento repentino fez sua cabeça latejar e o quarto todo girar. — Ai. Você... Você está dizendo que a vovó foi ao e não voltou, ontem à noite? Ela... Por que ela faria isso? Todos sabem que a floresta é perigosa a noite.
— Foi exatamente isso que você disse a ela ontem, mas ela não deixou que fôssemos junto, não se lembra mesmo? De nada? Você até insistiu para que ela ficasse aqui e te deixasse ir buscar a água.
— Eu não me lembro. Tá tudo...Não sei, confuso. Minha cabeça...
— Então deite-se, Lilian. Eu vou buscar um pouco de água pra você e depois vamos procurar a vovó, estou preocupada, Lili. — as lágrimas marejaram os olhos de Claire, para a irmã eram lágrimas de preocupação e talvez medo pelo que podia ter acontecido com a vovó, mas a verdade é que eram lágrimas de dor e culpa. Estava mentindo. Sua avó estava morta. E ela teria que guardar para sempre o peso desse segredo.
— Eu também estou preocupada, Claire. Vovó nunca sai a noite, ninguém sai, muito menos para ir na floresta quando o inverno já está começando.
— Eu sei. O inferno trás escuridão e perigos...
— E os lobos.
— Sim, Lili, e os lobos.
Uma lágrima escorreu e a garota a secou, antes que a irmã visse, piscou para conter as outras que buscavam passagem e foi a cozinha pegar água. Precisava de um pouco também, talvez ajudasse a ficar um mais calma. Sentia como se cada célula do seu corpo estivesse trêmula e abalada. Como poderia sustentar aquele segredo quando tudo o que queria era deitar e chorar até que toda aquela dor passasse e o peso em seu coração sumisse também?
Claire estava caminhando de volta para o quarto, com um copo e a jarra de água, quando a primeira batida na porta reverberou. Ela pensou que fosse August, ele disse que viria, mas as vozes do outro lado denunciaram seu engano.
— Vai com calma, assim vai assustar as garotas. — disse uma voz masculina.
— Se assustar com batidas na porta não chega nem perto do que terão que enfrentar. — disse uma outra voz em resposta.
— Eu sei, isso é uma tragédia mesmo. — o tom com que o homem falava era carregado de pesar e melancolia.
Mais duas batidas vieram em seguida, a garota colocou o copo e a jarra na mesa e foi abrir a porta.
— Bom dia, pequena Claire. — disse um deles, se chamava Frédéric Baptiste, o irmão mais velho de Johan. O outro, Claire também conhecia, era Sébastien Jaggery, pai de August. Ambos caçadores.
— Bom dia. Minha avó não está...
— Sabemos disso. — Sébastien a interrompeu. — É justamente por isso que estamos aqui. — completou. E essas palavras foram como um farol, uma luz que fez Claire entender o que os dois caçadores estavam fazendo ali. Era hora de manter o máximo de controle possível para conseguir fazer tudo como August havia lhe dito.
— Sabem onde a vovó está? Lili e eu já íamos procurá-la, ela saiu ontem para buscar água e ainda não voltou.
— Podemos entrar, criança? — perguntou o pai de August.
Ela afastou-se da porta, dando passagem para eles.
— Quem está aí, Claire? — ela Lilian, vindo do quarto, arrastando os passos e com as duas mãos na cabeça, segurando-a como se ela fosse cair a qualquer momento.
— Frédéric e o Monsieur Jaggery. — respondeu. Foi até a irmã e a ajudou a sentar-se em uma cadeira.
— Está tudo bem? — Frédéric indagou, encarando Lilian com preocupação. De todos os Baptiste ele era o mais gentil, talvez até o único que conhecesse o significado da palavra gentileza naquela família.
— Só uma dor de cabeça. — Lilian soltou um suspiro seguido de um breve gemido de dor. — Mas o que fazem aqui tão cedo?
— Infelizmente não estamos aqui para trazer boas notícias. Vocês precisarão ser fortes...— começou Sébastien, se aproximando das garotas. E então, lhes deu a tão terrível noticia que tinha para dar.
Naquela manhã, ele e o jovem Frédéric haviam saído para cortar lenha antes de irem tentar encontrar alguma caça, já era inverno, disse ele, e logo não haveria muito mais o que caçar além de alguns pequenos animais. Para adentrar no bosque, fora da trilha, passavam pelo rio e lá encontraram o corpo da avó das garotas. Ensanguentado e cheio de marcas que indicavam um ataque de animal. Mesmo sabendo a verdade por trás de tudo aquilo, foi duro para Claire ouvir cada uma das palavras ditas pelos homens. Talvez, justamente por saber a verdade é que tenha doído tanto.
— Provavelmente um lobo gigante ou...— Frédéric especulou. Mas as garotas não ouviram. Seus choros e soluços eram mais altos e significativos que o animal aparentemente responsável. Abraçada as duas choraram pela morte de uma das pessoas que mais amavam. Lilian chorou por perder a avó, sem saber que ela mesma a havia matado. Claire chorava pela perda, pela verdade, pelos segredos e mentiras, por Lilian ser diferente, por não ter sido capaz de parar a irmã, por não ter acordado antes e evitado aquilo.
Lilian sentia dor.
Claire sentia culpa.
O mundo das duas havia desmoronado e não haveria volta.***
Os pais delas já haviam sido avisados e em breve chegariam ao povoado, Frédéric lhes contou, e não precisavam se preocupar, logo o corpo da avó estaria em casa para que pudessem se despedir.
Foi um dia cinzento e nebuloso. Também muito longo. Lilian estava arrasada, Claire se perguntava como ela ficaria se soubesse da verdade. Quando os seus pais chegaram só houve mais choro, foi a primeira vez que Claire viu seu pai chorar.
Todos os vizinhos foram lá levar flores, ensopados, prestar condolências, oferecer seus mais sinceros sentimentos. Até Johan foi gentil, levou flores para Lilian e para Claire. Todos foram, menos August.
As horas passaram até escurecer. O sol mal brilhou naquele dia, o ar estava frio e úmido e, apesar das folhas secas ainda no chão, não havia como negar que o inverno havia mesmo chegado.
A cada hora, Claire sentia mais necessidade de falar com August. Considerando que Lilian não lembrava, ele era o único com quem ela podia conversar, o único que poderia ajudá-la a não desabar e contar tudo. Porque, em determinado momento, ela quis contar absolutamente tudo! Parecia tão errado com seus pais e com a memória de sua avó mentir e a noite passada parecia tão sem sentido. Só queria que aquela situação toda fosse apenas um pesadelo do qual a qualquer momento acordaria.
No fim da noite, quando quase todos já haviam ido embora e só restavam a família Lamartine, Johan e Frédéric Baptiste com sua esposa e Sébastien Jaggery, August finalmente apareceu. Trazendo em mãos uma rosa vermelha, que todos penssaram que seria para Lili, mas foi a Claire quem ele entregou.
— Vermelha como o sangue. Como o amor. Como um segredo. — disse em um sussurro para que somente a garota ouvisse. Plantou um beijo em sua testa e abraçou com a mesma ternura que um irmão abraçaria a uma irmã. — Vai ficar tudo bem, pequena, vai ficar tudo bem.
Não, nada ficaria bem. Talvez nunca mais algo ficasse realmente bem na vida deles. Porque em questão de minutos tudo desmoronou outra vez e agora não havia sido Lilian ou lobos presos em porões, o mundo se desfez com as palavras proferidas por Johan ao erguer um punhal com as iniciais de August.[1684 Palavras]
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SANGUE & NEVE (+16)
Mystery / ThrillerClaire e Lilian Lamartine vivem com seus pais em um pequeno e pacato povoado onde levam uma vida tranquila, apesar do confuso segredo que guardam, mesmo sem saber ao certo que o fazem. Lilian nunca foi a mais normal das garotas. Sempre reclusa e qui...