UM

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Os detalhes em minha mente ainda são tão nítidos quanto seriam se tudo houvesse acontecido na noite passada ou poucas horas antes de eu me sentar aqui e decidir contar essa história.
Ainda posso ouvir os estalidos das folhas secas sob os pés das duas garotas na trilha que cortava o bosque serpenteando; o barulho da correnteza do riacho, movendo os cascalhos e batendo nas pedras; ainda sinto a brisa gélida daquele fim de outono — ou começo de inverno. Para mim, enquanto houvessem folhas secas no chão ainda era outono, embora meu pai sempre dissesse que não funcionava bem assim.
“É no ar que sentimos as mudanças, não no chão.” dizia ele.
Também lembro do cheiro, aquele aroma familiar de excitação e medo martelando no coração de uma garotinha. A mais nova das duas que ali estavam. Seus cabelos dourados caíam na testa, grudando no suor frio enquanto ela se esforçava para acompanhar a irmã mais velha. Era a primeira vez que as duas tomavam aquele caminho tão perto do anoitecer,  e a floresta sempre a assustara, embora a pequena Claire não admitisse isso naquela época.

      — Devíamos ter ido pela estrada de terra. — resmungou, alto o bastante para que a outra ouvisse. Lillian estava alguns metros a frente, afastando galhos do caminho e, vez ou outra, mandando a irmã menor andar mais depressa. Tinham que chegar antes do sol sumir por completo no horizonte, a floresta era muito perigosa ao escurecer, era o que diziam os mais velhos, pelo menos. Mas os pés de Claire doíam e a garota estava praticamente se arrastando pelo caminho.
— Aí nunca chegaríamos. Ainda mais com você andando à passos de lesma.— retrucou Lilian.
— Eu estou andando o mais rápido que posso.
— Não rápido o bastante.
Lilian parou por alguns segundos e virou-se para a irmã com um olhar que era um misto de impaciência e preocupação, e havia algo mais naquelas íris azuis, algo que ninguém percebeu: medo. Um Medo sutil, ainda ganhando espaço em sua mente e em seu peito, acelerando a pulsação constantemente, mandando breves doses de adrenalina para sua corrente sanguínea. Talvez ela soubesse, pudesse de alguma forma sentir o que estava prestes a acontecer. E se sentiu, me pergunto por que não tentou evitar. Talvez, tenha tentado...

— Só um pouquinho mais depressa, Claire, por favor. — seu tom agora era quase carinhoso, embora ainda aborrecido. Claire acenou com a cabeça e apressou um pouco mais o passo e só quando a irmã a alcançou, Lilian voltou a andar, afastando galhos e chutando pedras enquanto sua capa vermelha arrastava-se pelo chão tal como a barra de seu vestido azul  a medida que se movia, com o capuz cobrindo seus cabelos acobreados. Ela sempre foi a mais bonita, todos diziam. Os lábios rubros como uma rosa, a pele como flocos de neve e os cabelos que pareciam uma mistura de raios do sol com as faíscas de uma forja de metal.
Claire se sentia tão simplória perto dela, apesar de ter as mesmas íris azuladas que herdaram do pai e os cabelos loiros da mãe, e sua pele ser rosada e não pálida como a da irmã, mas sua mãe sempre lhe dizia que era muito criança ainda e quando crescesse um pouco mais seria tão bela quanto Lilian, talvez até mais. E haveriam tantos rapaz para corteja-la quanto os que a irmã recusava.

          Claire sempre se perguntava o que Lilian via de errado nos rapazes. Alguns eram bem tolos, de fato. Mas vez ou outra, aparecia um que até o pai delas aprovava, todos aprovavam, menos Lilian. "Por que? O que esse tem de errado?" Claire perguntava a cada vez que a irmã colocava um novo pretendente para correr. “Porque eu não quero casar. E não há nada errado com ele, talvez haja algo errado comigo, não acha?"
“Eu só acho que você é tola e se continuar assim, vai acabar sozinha e totalmente biruta como tia Madeleine.”
Mas Lilian não concordava com Claire, não achava que tia Madeleine fosse biruta, pelo contrário, a achava uma mulher muito sábia. Se pudesse, a visitaria mais vezes, mas os pais não gostavam, diziam que uma mulher daquela idade vivendo sozinha com tantos livros só ensinaria coisas perigosas à Lilian. Mulheres não devem ler em demasia, era o que seu pai entoava quase que como um bordão. Porém, ela gostava dos livros e gostava de tia Madeleine. Diferente da maioria das garotas de sua idade que só pensavam em vestidos e em quanto tempo faltava até que um rapaz de boa família aparecesse para desposa-las, Lilian preferia ficar em casa ajudando a mãe, cuidando do pequeno rebanho de ovelhas da família quando pai ia caçar ou pegava a estrada rumo à cidade para fazer negócios no comércio e lendo, lendo o máximo que podia. Viajando para longe. Lugares maiores e mais belos que aquele velho povoado onde sempre estivera. Lugares onde não sentiria como se houvesse algo errado acontecendo dentro de si, sem as vozes dizendo tudo o que ela não queria ouvir e sem todas as vezes em que acordava sem lembrar como havia adormecido e nem o que havia acontecido antes, como se as últimas horas vividas até o momento em que adormeceu não passassem de uma tela em branco que sua mente não conseguia pintar.
Havia algo de errado consigo, ela sabia. Quem sabe fosse por isso que não queria se casar, era um segredo estranho que sua família guardava mesmo sem saber direito que o fazia.

       — Está escurecendo muito rápido. — Claire estava praticamente correndo ao lado da irmã, a respiração ofegante. Os estalidos secos de folhas se despedaçando sob seus pés. Crac, crac, crac...
— É, está.
— Lili...
— Sim?— ela voltou seu olhar para irmã, breves segundos que fizeram Claire sorrir por conseguir diminuir o passo um pouquinho para alívio de seus pés. Estavam andando há horas. A casa da vovó nunca antes pareceu tão distante.
— Já que vamos dormir na vovó hoje, você podia aproveitar e tentar conhecer melhor o filho do Caçador. — Claire sorriu de canto, com travessura. A menina era encantada com August Jaggery, ou "o filho do Caçador" como Lilian o chamava por pura implicância desde que eram crianças. August era mais um dos pretendentes que Lilian recusara, mas, diferente dos outros, ele era mais persistente do que ela podia imaginar.
— Não preciso conhecê-lo melhor. — respondeu — O conheço desde... bem, desde sempre praticamente.
— Não se faça de tonta, Lili, você entende o que eu quero dizer: não conhecê-lo como conhece, conhecê-lo diferente...
— Que?
Claire riu ao ver a cara confusa da irmã, uma risada gostosa de criança que ecoou por entre as árvores e fez alguns pássaros se agitarem.
— Conhecer como... Como seu pretendente. De um jeito romântico. Como... Como nos livros da tia Madeleine! — A garotinha deu um pulinho de empolgação.
— Não, Claire. Eu já disse que não quero casar.
— Besteira! Todo mundo quer. Até tia Madeleine já quis.
— Mas eu sou diferente. — dava para sentir em seu tom que aquele assunto a aborrecia, diria até que a irritava.
— Diferente como?
— Apenas diferente.
— Como diferente?
— Tem algo de errado comigo, Claire. — Lilian parou de andar outra vez e voltou-se para irmã. — Tem algo de muito errado comigo.— repetiu. As juntas dos seus dedos ficando esbranquiçadas devido a força com que estava segurando a aste da cesta que levava para a avó. Sentia o coração batendo, sua respiração um pouco mais pesada, estava começando a acontecer de novo. Aquela sensação estranha de que não tinha total controle sobre si, de que podia explodir a qualquer momento e depois disso tudo poderia mudar para sempre. Constantemente, Lilian sentia isso crescer dentro de si mas não fazia idéia do porquê nem de onde vinha, porém, as vezes, simples palavras funcionavam como um gatilho. Uma mão que puxava a alavanca e um monstro há muito recluso saía do porão escuro, e ele estava faminto.
— O que? — a garota perguntou mesmo que agora, olhando para os olhos da outra, visse o medo ali.
Lilian passou a mão no rosto enquanto um suspiro tenso escapava por entre seus lábios. Ela não queria responder àquela pergunta pois nem mesmo tinha uma resposta.
— O que há de errado com você, Lili?— Claire insistiu. E repetiu a pergunta uma, duas, três vezes, apesar de Lilian insistir em seu silêncio, usando a dor nos dedos que apertavam a cesta com firmeza demais para se concentrar e manter a calma. Mas quando a pergunta se repetiu pela quinta vez, a alavanca foi puxada.
— Eu não sei!!! — Lilian gritou, havia um misto de medo e fúria em sua voz. Tanta tensão que Claire estremeceu e deu um passo para trás, agora seus olhos também estavam assustados, arregalados. A irmã nunca havia gritado com ela assim. Já tinha visto Lilian gritar antes, sozinha, trancada no quarto, gritando coisas que Claire não entendia claramente e mandando que parassem mesmo quando não havia ninguém lá, repetindo palavras que não faziam sentido algum e, às vezes, chorando até soluçar em meio a tudo isso. Sempre soube que a irmã era diferente, só que nunca entendeu em que sentido. O quão diferente Lilian era? Era diferente da mãe que estava sempre alegre e gostava de sair para passear com Claire, também era diferente das moças que queriam casar e Claire era diferente de Lilian. Todas as pessoas são diferentes umas das outras. Então por que o "diferente" de Lilian parecia algo tão ruim quando ela mesma dizia? O que havia de tão diferente ali? Por que os pais cochichavam que talvez, no fundo, fosse melhor mesmo que Lilian não casasse? Nada fazia sentido. Nunca fizera. E agora Claire estava ainda mais confusa e assustada porque, pela primeira vez, ela realmente concordou com o que seus pais e Lilian diziam: havia algo de muito, muito errado com sua irmã.

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