Presença Ausente

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Foi como acordar outra vez. Lá estava o guarda-roupas, do outro lado do cômodo, e ali ao lado, sobre a estante moderna sem adornos, permanecia quieto o clássico despertador que talvez jamais voltasse a tocar novamente. Sandra hesitou em levantar da cama, olhava para o teto obcecada por encontrar falhas nas linhas paralelas do forro, ela não queria se pôr de pé e voltar àquela realidade do dia anterior — ou ainda seria o mesmo dia? Era impossível estabelecer uma linha do tempo com exatidão sem um smartphone ou relógio funcionando. Lá fora, nem o sol nem a lua davam as caras. Continuava escuro e não havia ninguém na cidade além de Sandra e seu monstro.

Ela não lembrava de ter ido dormir, mas isso era o que menos importava agora. Sentia-se presa e deixar aquela loucura para trás era a prioridade. Ela deixou o cobertor de lado e pôs os pés para fora da cama, sentando-se, virou o rosto em direção à janela acima da cama e olhando para fora observou com horror a paisagem estagnada. Era perturbadoramente semelhante a uma pintura à óleo, um quadro inacabado e abandonado para mofar em um sótão qualquer por um artista depressivo que fora incapaz de terminar​ a obra.

Nada fora da casa se movia. As nuvens, negras como asfalto, pareciam presas ao céu por finos e invisíveis fios de nylon prestes a arrebentar. As árvores nos quintais vizinhos assombravam a jovem com suas silhuetas fantasmagóricas, estáticas. Não havia sequer uma manifestação climática. Nada de vento, nada de chuva. Mas logo além daquela paisagem, em algum lugar no horizonte, escondido por detrás de casas e mais casas daquele bairro calmo e familiar, era possível enxergar um limite jamais visto antes, uma parede imaculadamente cinza que se erguia do chão ao céu interrompendo o mundo físico abruptamente.

De um salto, Sandra se colocou de pé, alerta e curiosa, com uma nova sede pela verdade. Ela se aproximou da janela e tentou visualizar melhor aquilo que notara, mas estava longe demais para qualquer olho desvendar seus detalhes. Então a jovem caminhou determinada pelo corredor até a sala, a sensação de estar em um lugar amaldiçoado havia diminuído, assim como a preocupação com a criatura do lado de fora. Ela precisava encontrar um modo de escapar dali sem ser impedida pelo o que quer que fosse.

Na sala, ela correu até a janela para averiguar se a criatura permanecia à espreita, mas não era preciso recorrer a isso, Sandra era capaz de senti-la ali.

Mesmo que fosse algo jamais percebido antes, ela sabia que as duas, ela e a criatura, compartilhavam de uma ligação. Ela sentia sua presença ausente como algo que havia sido tomado dela e que agora estava próximo o suficiente para voltar a ser sentido, porém não fazia mais parte de seu ser. Ainda assim ela olhou pela janela e viu a coisa, que retribuiu o olhar imediatamente e deslizou até ali. Sandra não se afastou da janela, mas agarrou com mais força a cortina que segurava. Enquanto observava a criatura caminhando com dificuldade até . Aquilo tinha os seus contornos, sua forma, era uma imitação lastimável da mulher. Sandra sentiu o estômago embrulhar com aquele frio lacerante voltando a emanar de seu corpo e fazendo sua visão escurecer à medida que os olhos flamejantes da coisa tornavam-se ainda mais vermelhos e penetrantes. O chão perdera a solidez e o ar sua leveza. Elas estavam cara a cara, a criatura sugando energia da mulher, lutando para pronunciar três palavras curtas que retumbaram dentro da cabeça de Sandra em um tom inumano que não era nem masculino nem feminino e dizia simplesmente: abra a porta.

Certa vez quando era criança, Sandra desmontara um formigueiro quase por completo em uma busca incansável pela fantástica formiga rainha. Ela assistira em um documentário que as sociedades de insetos tinham suas colônias abastecidas de novos membros por meio de um único ser descomunal que gerava milhares de ovos por dia. Era uma lenda extraordinária demais para apenas ouvir, ela precisava descobrir se era real, então, em uma manhã primaveril de sábado, ela apanhou a velha pá de seu pai na garagem e saiu pelo jardim à procura de um formigueiro. Depois de levar diversas picadas e de cavar quase um metro em direção ao centro da colônia, a menina foi pega de surpresa pela mãe que não poupou seus ouvidos de repreensões por dias. Ela era curiosa demais, descuidada demais. Foi proibida de brincar sozinha no jardim por um mês inteiro, permanecendo isolada dentro de casa com livros e mais livros de ciências que terminaram por se tornar seus melhores amigos por todo aquele período. Ali nascia uma cientista, alguém que não mediria esforços em tentar responder as perguntas jamais feitas sobre o universo. E agora ela estava diante de um enorme enigma, ainda assim, ponderou bastante antes de decidir que não abriria a porta para a criatura. Ela encontraria outro jeito de sair dali, porém não deixaria a coisa entrar.

Sandra não fechou a cortina, mas deu as costas à janela e sentou-se no sofá atrás de si. Sentia-se esgotada desde que olhara diretamente para a criatura, e ela voltava a sentir-se mal dentro de sua própria casa. Tonta, apoiou os cotovelos nos joelhos e repousou o rosto nas mãos, deixando sua visão ser encoberta por seus cachos volumosos. Estava buscando encontrar um sentido naquilo tudo, reorganizando os pensamentos na tentativa de não surtar. Procurava lembrar quando aquilo havia começado e imaginou como poderia terminar.

Então ela teve seus devaneios interrompidos quando passou a ouvir misteriosos sussurros, ecos de um universo paralelo que borbulhava em vozes frenéticas que se atropelavam umas sobre as outras, incompreensíveis. No entanto, em meio àquela cacofonia, uma voz se sobressaia, uma que dizia: abra a porta.

Esta se repetia como um mantra. Abra a porta. Abra a porta. Abra a porta. De repente, ela também escutou uma sirene. Pareceu um som completamente novo e estranho aos seus ouvidos naquele novo ambiente, ali uma sirene era tão incomum como o anjo da morte trotando em um unicórnio. Ainda assim ela a ouviu e logo em seguida, pela janela que deixara aberta, foi possível vislumbrar as luzes alternadas entre azul e vermelho de um giroflex. A criatura reconheceu o olhar esperançoso de Sandra e tão rápido quanto pode tentou gritar cada vez mais alto dentro de sua cabeça. Abra a porta! Abra a porta!

Sandra lutava contra o instinto de fazer o que a coisa queria para então poder encontrar uma resposta, porém isso lhe rendeu uma forte náusea que tomou conta dela e afastou seus sentidos. Ela caiu sobre o sofá de olhos fechados. Abra a porta! A criatura gritava, todavia já era tarde demais, a mulher havia desmaiado e desta vez em um momento delicado, já que seu tempo se esgotava rápido.

Recado:O terceiro capítulo trás lembranças dolorosas e um encontro inesperado

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Recado:
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