Sandra podia sentir o toque da água e também ouvir o som dela caindo sobre seu corpo e o chão aos seus pés. Era isso o que ela havia feito depois de largar seu relatório inacabado, ela decidira tomar um banho para diminuir todo o cansaço acumulado durante o final de semana, além de tentar esquecer o esforço que fazia para esconder o que sentia por Lucas. Era relaxante sentir a água se infiltrar nos cabelos e escorrer pela pele. Fechar os olhos era um convite para devaneios sobre astrofísica e os mistérios das estrelas em toda a sua magnitude. Como seria bom poder viajar por entre elas em uma epifania épica de conhecimento em uma vastidão infinita. Quantos outros planetas e seres vivos estariam habitando o cosmos logo acima de nós, tão próximos e tão intocáveis quanto um átomo ao lado de outro, vivendo a eterna solidão compartilhada de em momento algum alcançar seus companheiros. "Somos todos poeira de estrelas", diria Carl Sagan. Sandra nunca quis deixar de ser uma, mas ao contrário de seus desejos íntimos, ela estava presa ao mundo terreno, tentando dia após dia pelo menos entender aquilo que jamais ascenderia.
Enquanto isso a tempestade caía com ferocidade lá fora, disparando flashes contínuos de luz que serpenteavam pelos céus e, às vezes, alcançavam o chão em uma fúria descontrolada que arrasava qualquer coisa ao redor. Um destes raios, atraído pelos altos pensamentos da bela mulher, veio ao seu encontro em uma explosão ofuscante que clareou até os cantos mais longínquos de sua alma. Em algum lugar não muito longe dali, em um plano diferente, a criatura sentia seu corpo ser preenchido por uma angústia aterradora, e naquele momento ela soube que havia falhado com Sandra, pois não estava por perto para cumprir seu papel.
Antes seria impossível para Sandra sequer imaginar que a criatura tinha sentimentos, no entanto neste momento ela implorava em um lamento dolorido. Perdoe-me, me afastei de você e não pude tirá-la daquela casa. Sou apenas um pobre reflexo daquilo que seu espírito negou para si e não possuo a habilidade de interferir em algo que não seja a sua mente, então eu imploro, acorde Sandra. Sandra podia imaginá-la sofrendo à sua maneira, mesmo que talvez ela não estivesse realmente. Era doloroso para ela ouvir, porém a perspectiva de nunca explicar para o mundo o que era e o que significava aquele lugar doía mais.
Sandra voltou a si com um esforço tremendo. Ela abriu os olhos e levantou do chão onde havia desabado alguns momentos atrás. A criatura observava, recompondo-se diante da necessidade de cumprir seu dever antes de qualquer coisa, no entanto Sandra estava determinada.
— Me diga como posso entrar em contato com alguém fora daqui — sua voz saiu tão fraca quanto um murmúrio, todavia era o bastante para a criatura, que apesar de ter escutado o pedido, não se pronunciou. — Por favor.
Logo em breve você poderá interferir no plano dos vivos novamente, mas isso significa que você jamais poderá sair do Oculto. É um preço alto que não estou disposta a pagar e nem você deveria estar.
— O quê você quer dizer com isso? Como pode existir um modo de sair daqui se eu estou morta? — A criatura não respondeu outra vez, parecia constrangida, Sandra pressionou. — Eu estou morta, não estou? Eu me lembrei da minha morte, da eletricidade e o calor dominando meu corpo até não restar sequer uma chance de sobreviver — havia um pesar no tom de voz da mulher, que baixou o olhar para o chão. Aos poucos aquele fato ia se instalando sobre ela, suave como flocos de neve, mas com a capacidade de formar uma avalanche.
Sim, você está, porém ainda não concluiu sua morte e você precisa fazer isso o quanto antes, se não nós duas voltaremos a ser uma só e a sua Fronteira estará longe demais para que a alcancemos, e ainda que isso aconteça, não poderemos atravessá-la, não juntas, e então você estará condenada a passar a eternidade no Oculto, sempre reiniciando do lugar onde nos conectamos pela última vez no plano físico. A criatura se referia à cama onde Sandra sempre acordava, pois era através dos sonhos que os pecados eram transferidos de um ser para uma coisa.
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Através do Oculto
Paranormalne• CONTO COMPLETO • Em uma segunda-feira de verão, o sol, as pessoas e toda a vida na Terra decidem não dar as caras. Cercada de trevas em uma realidade oculta para muitos, Sandra, uma jovem estudante de física, não pode mudar o que já se passou...