Insônia

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O ponteiro do relógio move-se preguiçosamente. A cidade dorme. Algum carro arranca na rua, sirenes ressoam distantes, tic tac, tic tac, o tempo não se preocupa em avançar. Meus olhos ardem, a cabeça pesa mais que o normal, a folha a minha frente se conserva branca, me desafiando, me questionando sobre o que vou escrever. Não consigo dormir, não consigo escrever.

Minha visão periférica começa a me trair, vultos e sombras se arrastam pelos cantos do quarto, mas não vejo se olho diretamente, isso não importa afinal. Não consigo me concentrar em nada, talvez um café forte me ajude.

Ao voltar para o quarto e para a minha folha em branco o vejo, ele está comigo, todas as noites quando a cidade se acalma. Não me preocupo, ele não me faz mal, já deve ser a consequência de algum mal que me assola.

— Boa noite. — Seu tom era sorumbático.

— Boa noite.

Recuso olhar seu rosto, meu rosto. Ele sou eu, meu doppelganger, embora as olheiras sejam maiores e o cabelo mais desgrenhado, sou eu. Tento me concentrar em meu trabalho.

— Continua sem criatividade, não é? Talvez seja a sua rotina. — O seu sarcasmo é evidente.

Ignoro.

Um longo bocejo quase me convence a voltar para a cama, mas eu sei que é um alarme falso. Olho para o relógio, o ponteiro quase não se moveu.

— Sabe, acho que ela me ama. – Eu poderia continuar a ignorá-lo, mas não teria ninguém para conversar.

— Sei. Ela disse algo assim, e você, você a ama? – Ele tamborilava sobre a mesa enquanto falava.

— Não sei, talvez não estivesse sendo sincero, não sou nem comigo mesmo.

— O seu café vai esfriar.

Já são três horas, não preciso olhar o relógio para conferir, essa é a hora que o vizinho chega. Todas as noites ao chegar ele e a mulher começam a discutir. Todas as noites, e ainda assim continuam juntos, aquilo não pode ser amor. A xícara faz uma marca em meia lua na folha, poderia trocá-la, mas desisto. Meu carrasco continua a me vigiar, um abutre esperando o momento de atacar a minha carcaça.

— Acho que posso aprender a amar ela, é uma garota legal.

— E você é um dissimulado, que sorte a dela! – O sorriso de orelha a orelha dele consegue me deixar desconfortável.

— O que você está falando, não passa de uma alucinação, o que sabe sobre o amor? Certamente posso me adestrar a amá-la.

— Não gosto de café frio, pode tomá-lo logo?

Finalmente os vizinhos foram dormir, troco a página e olho para outra que me encara de forma igualmente desdenhosa.

— Ela disse "eu te amo"? Especificamente essas palavras, disse?

— Não me lembro, você é que estava lá, lembra?

Esforço-me para lembrar o que aconteceu, tento recriar todas as conversas mentalmente. Lembro de seu rosto, de seu sorriso, de como ela se movia. E então fui confrontado com um questionamento, ela falou que me amava?

Meu algoz se regozija em ver meu martírio.

— Acho que sou só um tolo sonhador, no fim. — Afasto os papeis, tentarei escrever outra hora, mais uma vez desisti. — Vou dormir.

— Droga, o café esfriou.

Insônia e outros contosOnde histórias criam vida. Descubra agora