I - Lost in Manhattan

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Flashbacks... A imensidão daquela avenida, que não sei nomear, pois não tive tempo ou capacidade de ver o seu nome, imersa em luz. Tanta luz que ofuscou na altura a minha visão. Nunca poderia ter visto tantas luzes em Manorville antes. Pestanejei e senti o corpo fraco a quebrar. Os meus óculos intactos na minha face pálida. O asfalto frio e molhado por baixo de mim. O corpo pesado e as roupas ensopadas na chuva gelada...

...O colchão era rijo e desagradável, a luz intensa mal me permitia abrir os olhos e os meus braços recuperavam lentamente as suas forças enquanto sentia tremores ao longo de cada músculo. Os dedos mexiam involuntariamente, como se recebessem estímulos elétricos do cérebro. Estava deitado, parcialmente nu, de barriga para cima. Oiço o apito constante da máquina e olho para o lado seguindo o som e tentando manter os olhos ligeiramente abertos. Os meus óculos não estavam na minha cara, mas conseguia perceber suficientemente bem que estava ligado a um monitor cardíaco. "Onde estou? Que aconteceu?"

Vais ficar aí deitado? Deixar-te morrer e acabar como eles?

Ao início não pude recordar aquela voz e depois debati-me com o que se tinha passado. Eu conhecia aquele timbre. Como poderia esquecer a voz na minha consciência que me fizera fazê-lo?...

...Os meus ouvidos desligaram quando o meu pai soltou o último palavrão e deixou de ver a estrada na sua frente. A velocidade era muita e o alcatrão era uma pista de patinagem. O seu primeiro instinto fora o de travar o carro. O seu maior erro também naquela velocidade, naquela curva e naquele pavimento. A minha mãe terá com certeza gritado e entrado em pânico. Eu... Eu fiquei calmo agarrado ao assento onde estava e abri os olhos para ver aquela avenida escura uma última vez. Lá fora nem um candeeiro iluminava a estrada e a parte elétrica do carro desligara-se por completo pura e simplesmente. Suspirei no último instante antes de sentir o poder do impacto do capotar do carro. Fui eu que o fiz. Não diretamente, mas fi-lo conscientemente, embora não ciente de como o havia feito...

Flashbacks... Mas ainda estava deitado naquela cama de hospital. Precisava de saber o que tinha acontecido, onde estava, mas primeiro precisava sair dali. Tentei esticar-me para alcançar a mesa-de-cabeceira e algo que pudesse nela ter a meu acesso que identificasse o hospital onde estava, mas os meus braços ainda não me obedeciam. Olhei à minha volta, o quarto não era muito grande, mas era individual e mais ninguém se encontrava no interior. A luz ainda me perturbava os olhos e doía-me a cabeça cada vez que tentava abrir um pouco mais os olhos. Como haveria de sair dali?

A máquina... Usa a máquina. – falou novamente a minha consciência. Não tinha ainda sequer posto a hipótese de, simplesmente, poder estar a enlouquecer. Bati com a cabeça na almofada e tentei afastar a minha própria consciência de dentro de mim (ato fútil e infantil, eu sei).

– O que és? – perguntei em voz alta com os dentes semicerrados. Não obtive uma resposta. Esperei alguns segundos, sempre inquieto. Os nervos faziam-me ranger os dentes e mexer freneticamente os dedos das mãos. Voltei a fechar os olhos e 'gritei' para dentro da minha mente: "O que és?"

Clive, usa esse teu cérebro de merda. Sabes o que sou. Agora rápido... A máquina! – rugiu novamente o voz grave e seca. Desta vez não tive tempo de pensar em voltar a perguntar. Olhei para o monitor, do qual já me tinha isolado do som dos batimentos, e soube o que queria a voz dizer com "usar a máquina". Mas como?...

...Flashbacks... Os meus olhos voltaram a fechar-se com força e a minha cabeça girou em cima da almofada... Lá estava eu, dentro do carro. Ouvia a voz de uma criança a falar sozinha no jardim e ouvia vozes de adultos tratando assuntos de adulto. Eram as vozes dos meus pais, reconheceria aquelas vozes na outra vida. Eu tinha de ser a criança. Diante dos meus olhos tudo o que via era nada. Só som. Som no escuro.

Clive, The Black Page (Project Origin)Where stories live. Discover now