Não há nada que possa ser melhor do que a cidade. É impossível que até as dores de cabeça causadas pelo ruído da multidão e pelo tráfego automóvel sejam más. Até essas dores de cabeça me fazem sentir vivo na selva populacional humana.
Passei dias, talvez semanas, dos primeiros meses em Manhattan a descobrir. Dava por mim a deambular sozinho na noite com fones nos ouvidos a ver grupos de jovens bêbedos que se divertiam rindo-se uns dos outros, traficantes pouco astutos que me abordavam por me verem coberto pelo capuz que me obscurecia o rosto. Durante o dia os pedestres corriam e transpiravam pelos jardins, nos passeios andavam apressados aqueles que não queriam chegar atrasados ao trabalho, estafetas vendiam os jornais com as novidades mais quentes e eu observava todos do meu canto. Observava o carteirista que assaltava a senhora que se dirigia ao metro no mesmo segundo que tropeçava nela e lhe pedia desculpa sem que ela sequer desse pela presença da sua mão no bolso do casaco; a rapariga morena, uma das mais belas que vi em toda a vida, agarrada às suas pernas tentando conter o nervosismo da idade e o grupo de três amigos que a olhavam como abutres esfomeados pela sua necrófaga refeição. O mundo e a humanidade tinham conceitos engraçados.
Ia gostar de conseguir ser tão capaz de entender tudo tão bem quanto o Samuel, mas se isso estaria ao meu alcance teria de passar mais tempo a treiná-lo e, felizmente, era algo que me dava bastante gozo fazer.
O Samuel vivia comigo num apartamento antigo, numa zona pobre da cidade. Conseguimos arrendá-lo com um pequeno adiantamento devido ao dinheiro do envelope. Não queria utilizar o dinheiro, mas o Sam insistira em utilizá-lo para poder ter um teto e combinámos que a partir daí teríamos de arranjar o nosso próprio sustento. Desde então vivemos juntos no velho cubículo do segundo andar. A senhoria não é muito simpática, mas nenhum de nós é.
Não estava a ser fácil ter uma vida estável em Manhattan. Nenhum de nós conseguira arranjar emprego, mas o velho lá aparecia com algum dinheiro de vez em quando. Sempre que o questionava acerca de onde vinha o dinheiro limitava-se a responder que era a sua secreta forma de sustento. Continuava a desconfiar de que não seria coisa boa, mas nunca gostei de ver o Samuel chateado e preferia não pressionar o velho Rat.
O apartamento era bastante pequeno, mas suficiente para um velho mendigo e um jovem disposto a começar a sua vida a partir do nada e com nada. A mobília era pouca, desconfortável e em más condições, mas o preço fazia jus às mesmas condições e, embora não fosse perfeito ou medíocre sequer, tinha de ser também o suficiente e o Rat parecia bastante feliz naquele lugar.
Continuava a ser um homem reservado e com enigmas e mistérios que me deixariam boquiaberto se fosse um jovem comum, mas podia ver que a cada dia que passávamos juntos naquela casa nos afeiçoávamos cada vez mais. Na véspera voltei a falar-lhe acerca do ensino que tinha dito que me iria dar sobre meditação. Exibia sempre uma expressão carrancuda quando lhe falava no assunto e limitava-se a responder: "A tua lição começa quando estiveres preparado e isso acontece agora mesmo". Na verdade nunca percebera muito bem o que queria dizer e, na maior parte das vezes, desistia quando ouvia a sua afirmação, mas outras continuava a insistir até chegar ao ponto em que acabávamos por discutir e o clima ficava pesado ou acabava por vê-lo sair de casa e voltar umas horas mais tarde. "O ambiente perfeito para a meditação não é a pressa e inquietude" – disse terminando o assunto na véspera.
Passados alguns dias lembrei-me finalmente do anúncio de emprego que tinha recolhido há poucas semanas no beco onde encontrara o Rat. Não tinha experiência no ramo das vendas, mas na verdade, não tinha experiência em ramo algum e perdera praticamente dois anos de estudos trancado num hospício. Procurei pela folha que já não recordava onde estava e acabei por encontrá-la passados poucos minutos. Continuava no bolso das calças que usara naquele dia (ainda não tinham sido lavadas). O endereço do local onde procuravam empregado e os contactos atribuídos. Preferi fazer uma nova caminhada por minha conta até ao local inscrito no anúncio. Era ainda um pouco longe, mas os transportes públicos, com certeza, me facilitavam a vida.
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Clive, The Black Page (Project Origin)
Ficção CientíficaOs heróis não têm de ser a tradição de antigamente. Quando Clive Page tem poderes que não reconhece, dos quais não faz a mais pequena ideia de onde poderão ter surgido nem como os controlar, começa a sua busca por respostas. Depois de apagar e ouvir...