Samuel mantinha-se estático a olhar-me a cerca de cinco metros de distância. Não sabia muito bem descrever se me reprovava ou se simplesmente tentava não transparecer qualquer tipo de expressão. Sentado à minha frente de pernas cruzadas, em silêncio há alguns minutos, poucos. Era perturbador sentir a presença do Rat assim tão íntima e no constrangedor silêncio em que me deixara, mas o velho não parecia minimamente perturbado com isso. A certa altura só queria quebrar o momento e levantar-me ou interromper o silêncio e colocar alguma pergunta, mas depois olhava-o e renegava a ideia da minha própria ação.
Eram oito e meia da manhã, o sol já raiava e estávamos os dois sós no terraço do prédio. Acordei cedo com planos e o Sam disse-me que íamos começar a treinar naquela manhã. Não pude recusar. Se houve algum momento em que quisera compreender o que se passava e como não dar ouvidos às vozes, aliás, obedecer-lhes como se não tivesse vontade própria, esse momento tinha de ser aquele.
O velho continuava de olhos fechados enquanto eu espreitava de vez em quando para conferir se assim se mantinha. A t-shirt branca de mangas cavas e as calças largas e compridas. O cabelo curto, quase rapado e a pele negra brilhando ao leve toque da luz solar matinal. Quase parecia outro homem, tão diferente do homem que encontrara na rua há umas semanas, tão sereno, mas ainda tão impenetrável, tão invulnerável. Preocupava-me não conseguir definir uma ideia sobre ele, uma ideia que soubesse que estava acertada, além de um simples julgamento ou alguma definição que não partisse de uma ideia formada com base no preconceito.
Eu... Eu continuava ali na infinita espera pela "ordem" seguinte, olhos a piscar para me certificar sempre de que Samuel não adormecera ou desertara. O capuz do casaco fino e negro pousado sobre a minha cabeça. Os óculos assentes por cima do meu nariz e a pequena brisa matinal que me continuava a arrepiar até aos ossos, mas apenas ligeiramente. A barba desgrenhada e escura que me caía pelo rosto, sinal do meu desleixo e falta de vontade. Quase podia sentir o bigode enrodilhado a tocar-me os lábios e a comichão que me faziam os pelos na zona do pescoço.
Na verdade, não tinha passado tanto tempo quanto parecia, mas a minha paciência estava a comprimir-se a miúde. A irritação de continuar a ver o velho de olhos fechados e joelhos cruzados, simplesmente, fatigava-me.
– A impaciência e a inquietude não te vão conseguir fazer focar, Clive. – disse como se me conseguisse ver de olhos fechados e, até ler-me os pensamentos. Com a atenção que estava a ter apenas em focá-lo quase podia desenhar um mapa de medidas para cada milímetro dos lábios que se moveu enquanto falou. Parecia tão redundante estar simplesmente a olhá-lo, parecia tão inútil que quase me esqueci do propósito. Era como se a minha própria mente não quisesse que eu fizesse aquilo, como se novamente me estivesse a tentar fazer esquecer da importância que tinha dado ao facto ainda no dia anterior.
– Talvez seja melhor retomarmos quando estiveres mais calmo. Outro dia. – acrescentou.
– NÃO! – gritei sobressaltado. Dei um salto e fiquei de pé. Samuel abriu os olhos e continuou sentado. Sabia que tinha de negar a vontade que a minha mente me tentava incumbir. Uma estranha sensação percorreu o meu corpo, como se não devesse, de todo, rejeitar aquela vontade. Tentei focar-me e respondi um pouco estonteado: – Sam, eu preciso de fazer isto. Por favor.
Sam olhou-me desaprovador. Eu sabia que ele era o único que podia interpretar a minha expressão ou, pelo menos, o tom da minha voz. Saberia que eu estava a ser sincero e saberia, sem ter de lhe explicar, que algo me estava a tentar contrariar a vontade.
– É como se a minha mente não quisesse que eu meditasse. Preciso de a contrariar. – terminei quase implorando ao homem.
– Talvez seja mais difícil do que planeávamos. – respondeu-me. – Senta-te e foca-te. É preciso que te concentres só em ti! – terminou fazendo-me sinal para que me sentasse. Obedeci e cruzei as pernas, olhei-o uma última vez antes de fechar os olhos e tentei acalmar a minha respiração e a confusão na minha cabeça. A brisa fresca não deixava de me incomodar a concentração. Não conseguiria concentrar-me enquanto sentisse aquele frio no corpo... Nem enquanto continuasse a ser pessimista ao achar que não iria conseguir por todas e quaisquer razões.
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Clive, The Black Page (Project Origin)
Science FictionOs heróis não têm de ser a tradição de antigamente. Quando Clive Page tem poderes que não reconhece, dos quais não faz a mais pequena ideia de onde poderão ter surgido nem como os controlar, começa a sua busca por respostas. Depois de apagar e ouvir...