''Ontem eu decidi que iria mudar.''
Já perdi a conta de quantas dezenas de milhares de vezes esse pensamento passou pela minha cabeça, e apenas passou. Acordo todos os dias tão cedo e determinada, mas olho em volta e me pergunto se vale à pena mudar, me pergunto se vale à pena tentar salvar a mim ou a eles.
Igual a todos os dias, os pesadelos me trouxeram um belo café-da-manhã. Ardor mental e remorso próprio. São sempre eles que me beijam pela manhã com palavras de 'já é hora de acordar' e servem meu estômago, ou melhor, o fazem revirar de agonia. Prometi a mim mesma que mudaria tudo, e se possível, todos. É insuportável o fato de simplesmente dormir ou acordar, eu preciso domar esses sonhos antes que "ele" me destrua.
"Eu preciso de você, você é minha vida. - ele dizia, repetia e articulava. - Venha até mim, venha. - implorava, sentado num muro baixo e pichado bem a minha frente me parecia até familiar. Ele estendeu sua mão até mim e eu queria, ah, como eu queria, aperta-la, sentir sua textura, sua temperatura. Tentei erguer minha mão em encontro a sua, mas senti como se minhas mãos, meus braços, meus membros não estivessem ali. Meu cérebro não obedece meus comandos? - Eu te amo, eu te amo, eu te amo... - e me distanciei involuntariamente. Tentei voltar, queria tocá-lo, mas uma força invertia meu desejo, quanto mais eu ansiava proximidade, a força me dava longinguidade. Eu precisava senti-lo, beija-lo... Eu o amava, não é?".
Olhei pela janela da sala o céu já escurecido e estrelado como a tempos não reparava, o relógio marcava dezenove horas e nenhum som audível ecoava pela casa. Abri a porta e com cautela pus meus pés pra fora. O vento leve trazia consigo um friozinho que percorreu toda a minha espinha e o típico cheiro de monóxido de carbono liberado pelos carros.
Caminhei pelo bairro, não observando seus atributos, não espairecendo. Só caminhei, sem rumo, mas com anseio dentre de mim, agitando um desejo de achar uma coisa, uma casa. Esse era só mais um bairro popular que com o passar dos anos ganhava casas, prédios e comercio ao invés de continuar com obras bregas e antigas. As casas mais humildes ficavam nos "extremos", sem asfalto, sem saneamento, sem cor, sem qualquer outro aspecto elementar para sobrevivência. E era impossível não reparar o abandono, em especial, o abandono. Reparando bem, não existia nenhuma dificuldade em achar casas e obras totalmente inacabadas, abandonadas. Quando dei por mim, pensava que cada vez que passava ali poderia ser o adeus a alguma daquelas construções, o fim da história de algo para iniciar uma outra.
Contudo, de longe já era possível enxergar aquela que a tempos refugiava o meu conto individual, aquela que abrigava meus sonhos. Um casarão. Árvores secas e mortas, grades enferrujadas, janelas quebradas, madeira consumida pelo tempo e pelos cupins, luz exclusivamente lunar, frio explícito arrepiando todo e qualquer pelo dos pés à cabeça, além de ratos, insetos e alguns corvos. Tudo o que facilmente disposto como cenário de terror, um visual quase premeditado, e eu nem havia entrado ainda. Não sou o tipo de pessoa que tem medo de assombrações, só um pouco de receio. Ou talvez muito.
Continuei a caminhar.
O casarão estava mais estranho que antes, mais real. Ora, eu estava na frente do lugar que me assombrava por noites, o que me faz acordar suada, o que me faz parecer louca. O pouco de coragem que eu ainda tinha pegou minha mão e me ajudou a empurrar a porta de madeira onde jazia a frase "mantenha distância" numa caligrafia daquelas que você só encontra nos convites de casamento. Estava escuro, muito escuro. A luz da lua entrava pelas brechas onde não haviam mais telhas e, graças a ela, eu tinha certeza que não esbarraria em nenhum objeto indesejado.
Todos os objetos estavam cobertos por uma camada absurda de poeira, menos um. Passei os dedos sobre as bordas do porta-retratos e os olhei em seguida. Limpos. Guiei a foto até onde a lua iluminava e o vi, estampado numa foto com o maxilar travado, sombracelhas firmes, e com um olhar longe e perdido. O garoto que me invadia todos os dias, me atormentava e me socorria, me amava e me perdia. Procurei o verso da foto na esperança de encontrar um mero nome, data ou qualquer outra informação que diminuísse meu questionário. Então ouvi.
-Quem é você?
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Going To Hell // t.l.
عاطفية"Eu te amo, ele dizia, eu te amo." [...] Às vezes, me sinto como se estivesse me perdendo, me afastando de mim mesma. Sinto correr em minhas veias, pulsando o desejo tão estranho que sempre temi que fosse acontecer. Pois a primeira vez que me rendi...