A folha

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Raramente saímos de casa sabendo o que vai nos acontecer e mesmo quando planejamos o que faremos o dia inteiro tudo pode dar errado partindo de uma fração de segundo que poderá mudar sua vida totalmente. Outras vezes esse milésimo de segundo pode ameaçar a tênue linha que divide a vida da morte.

Todos os dias são meramente comuns até que algo extraordinariamente bom ou ruim de fato aconteça e mude o rotulo daquele dia específico.

A partir do momento que um instante fica marcado na sua memória a medida que você lembra do acontecimento ele fixa-se gradativamente até que uma hora aquela lembrança não pode ser apagada de jeito nenhum.

E é em meio a esses pensamentos que volto a lembrar de uma história verídica que me mostrou os vários modos de enxergar a vida a partir de uma ameaça tamanha que me faz arrepiar-me só de lembrar

Antes desse acontecimento eu não era uma pessoa saudável para o sistema em que vivia, pode parecer estranho me expressar dessa maneira, mas depois de entender os fatos que decorreram vocês assimilarão bem.

Sábado, eu e minha família decidimos ir a uma sorveteria ao lado da catedral principal onde muitos iam para jogar conversa fora e quem sabe tomar um sorvete. O dia estava frio, era outono, e se me lembro bem havia umas dez pessoas entre elas crianças e idosos todos muito sorridentes.

Miguel, meu filho mais velho, entrou primeiro e Marina, a mais nova, logo atrás dele. Eu e minha mulher ficamos para trás observando como uma ida a sorveteria poderia ser o tal acontecimento extraordinariamente bom que mudava o dia por completo.

A garoa que agora caia forçava todos a entrar no estabelecimento, alguns foram embora e outros permaneceram lá afugentando-se da chuva.

Minha filha sujava-se com o sorvete enquanto eu ria e minha esposa se enfurecia. O riso, a raiva, a vergonha foram os últimos sentimentos que nos dominaram antes do desespero.

Eu não sei o que leva alguém a assaltar uma sorveteria cheia de idosos e crianças ao lado de uma catedral depois da missa, mas foi o que aconteceu.

Três homens armados entraram e encapuzados mostraram em suas mãos as armas dizendo para que todos ficassem em silêncio. Ninguém tentou correr, ninguém se abaixou ou gritou apenas todos olharam para os assaltantes e depois para a bola de sorvete da minha filha que agora derretia no chão cheio de pegadas de lama.

            As atendentes foram para trás do balcão buscando qualquer dinheiro que pudessem dar para assim tentar acabar de vez com aquele clima pesado que dominou o local.

            Meu coração estava acelerado, minhas mãos suavam e aos poucos eu sentia uma crescente onda de adrenalina me tomar. Minha esposa com os olhos marejados olhava fixamente para meus filhos que pareciam não entender muito bem o que estavam acontecendo.

             Os homens que haviam entrado ali e ameaçado a todos sem dúvidas estavam descontrolados pois suavam e tremiam tanto quando a mim e mal conseguiam mirar a pistola.

            Tudo corria perfeitamente bem, ou quase, até o momento em que todo dinheiro havia sido entregue e os assaltantes queriam mais e insatisfeitos começaram a vasculhar o local. As pessoas se apavoravam, porém, buscavam se recompor com medo da bala atravessar suas cabeças.

            Na minha vez de entregar tudo que tinha senti o cano da arma apertando minha testa suada, peguei minha carteira e busquei tudo o que tinha. Eu sentia que ia morrer a qualquer instante o perigo sussurrava em meu ouvido: é o seu fim.

            Sentir a mão do meu filho sobre a minha trouxe uma calma passageira, afinal talvez ele só pegasse o dinheiro e fosse embora e com sorte seria preso naquele mesmo dia.

            A partir dali tudo aconteceu muito rápido. Foi aquela fração de segundo que citei no começo da história que mudou por completo minha vida. Aconteceu mais ou menos assim:

            Um segundo bandido pisou na bola de sorvete que derretia no chão, minha filha horrorizada com a cena de sua deliciosa sobremesa sendo esmagada gritou, assustado o homem bateu na árvore o lado de fora e provocou a queda de uma folha. O bandido apontou a arma para minha família e observamos a folha cair e a morte se aproximar.

            Só conseguia pensar que era o fim, comparava-me com aquela folha caindo rumo a uma poça. Seria a vida assim tão frágil quanto aquilo?  Antes a folha fazia parte de todo um sistema e bastou um baque forte para ela deixar sua árvore e se tornar lixo no chão molhado. Eu cresci e me tornei uma parte da árvore da vida, dei frutos, meus filhos, e tive orgulho do que produzi. Vivi sendo parte de um tipo de algo maior que me sustentou até ali. Devagar o vento levava a folhagem verde e jovem. O outono tinha sido cruel com ela... seria ele comigo também?

            Minha esposa tinha outra visão, olhava para a folhagem que devagar ia descendo e lembrava-se daquela passagem bíblica que diz que nem uma folha se quer cai sem a permissão de Deus, assim deixou a situação nas mãos daquele que tudo podia fazer inclusive os tirar daquela situação.

            Miguel via naquele instante a oportunidade perfeita de derrotar os bandidos e salvar a todos e assim como aquela folha voar e cair sobre aqueles que o ameaçavam.

            Como eu disse antes o ladrão nervoso não tinha boa mira, ele puxou o gatilho e acertou uma janela.

            Agora não só minha filha chorava, mas o pânico criado pelo estardalhaço do tiro fez com que mais gente chorassem e ameaçado pelo barulho que causara o ladrão só conseguiu mandar eu fazer minha filha parar de chorar enquanto ele e os outros fugiam.

            Eles saíram no instante e que a folha pousou vagarosamente no chão. A chuva havia parado e as coisas foram voltando ao normal. Aos poucos as pessoas foram indo embora, alguns traumatizados outros nem tanto.

            Eu e minha família fomos quase os últimos a deixar o ambiente. Esperamos que minha filha tomasse o outro sorvete que havíamos comprados. Mais calmo eu entrava no carro e agora algo brotava dentro de mim. Uma nova semente que daria vida a uma nova arvore cheia de folhar e oportunidades.

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⏰ Última atualização: Feb 28, 2017 ⏰

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