O despenhadeiro não a assustava. Estava parada de pé acima de um pequeno monte, observando a grande movimentação logo abaixo, no vale. Uma massa de pessoas, dentre eles jovens, idosos, mulheres e crianças, se organizava em uma fila interminável, rumando para a grande Gahari. A cidade se escondia em meio a grandes montanhas. Para adentrá-la, aqueles que não o faziam através do ar precisavam se esgueirar por uma estrada entre dois penhascos. Apesar de o local parecer assustador, a estrada era segura, pois a parede das montanhas protegia os habitantes de qualquer animal selvagem ou tempestade de areia. Os homens que guardavam os enormes portões da cidade eram corpulentos e vestiam tecidos amarelados por baixo da armadura de metal. Eles guiavam o grande grupo de pessoas para dentro das muralhas através de gestos e gritos.
Ela observava tudo, sem saber ao certo o que aquilo significava. Ao seu lado estava Torius, seu irmão de clã. Eram alados. Suas asas simples estavam dobradas atrás do corpo e os olhos seguiam a movimentação com interesse.
"O que acha que vão fazer com essa gente?'', perguntou ela ao irmão de clã. Por um momento desviou o olhar para encará-lo.
"Os mais fortes talvez tenham chance na guarda da cidade", respondeu ele com os olhos fixos à cena. "Temo que os fracos e as crianças sejam colocados em qualquer baixada. Os príncipes de Gahari de mal nada farão, mas também não proverão moradia de qualidade ou alimento suficiente para todo mundo."
"E os imortais não têm poder aqui."
"Não", ele concordou. "Essa gente terá de trabalhar pela sobrevivência."
"Bem, era o esperado. Com a cidade natal em ruínas, tinham que fugir. Fiquei espantada com o consentimento rápido dos príncipes."
"Para eles é um benefício receber refugiados. Assim serão bem quistos pelos mercadores e por todos que vivem fora da cidade. De qualquer forma não foi sorte, usamos a palavra mágica."
Ela riu e, assentindo, virou de costas para a movimentação, ajeitando seu coldre. A bainha negra que envolvia sua espada balançou de leve, os pequenos sinos que dela pendiam tilintavam ao vento. A alada chamava-se Alaïs e, juntamente com Torius e mais trezentos irmãos de clã, fazia parte dos Peregrinos. Assim eles eram chamados por não possuírem moradia fixa e permanecerem em constante movimento através das Terras Vãs, como era chamado o maior território ao sul de Ala, o continente onde estavam. Apesar de pertencer aos Peregrinos, ela e cada um dos irmãos de clã um dia fizeram parte de alguma família, em alguma cidade de algum reino. Alaïs e Torius antes de ingressarem no grupo tinham residido em Alfhëin, um reino ao norte. Ela havia entrado para o clã há cinco anos e nunca se arrependeu. O alimento por vezes era escasso, a cama não era boa, mas as companhias e o objetivo do grupo compensavam qualquer desconforto. Além disso, as oportunidades dadas aos Peregrinos eram muitas.
Alaïs olhou para o céu e disse ao irmão de clã:
"O sol está se pondo. É melhor voltarmos."
Torius abriu suas asas e alçou voo rapidamente, seguido pela peregrina. O vento batia em seus rostos e fazia os cabelos e as vestes leves esvoaçarem. Enquanto voava, Torius pensava em seus irmãos de clã. Os Peregrinos eram liderados por um sacerdote branco treinado em Rök. Hansen era seu nome. Com a ajuda de outros irmãos de clã, ele era responsável pelo rito de passagem que oficializava a entrada de um novo membro no grande grupo. Para ingressar nos Peregrinos, o candidato era submetido a um jejum de quinze dias e, ao fim do período, participava da caça ao lince na Mata da Solidão. Na caça, o candidato portava uma adaga feita de osso e deveria matar o lince antes de preparar o animal para servir de alimento ao grupo. Por vezes mais de uma pessoa pedia para ingressar no mesmo período. Assim, eram providenciados mais animais para a caça e um rito coletivo era organizado. Nos últimos três dias, cinco pessoas haviam pedido para se tornarem peregrinas. Enquanto Hansen organizava o evento, Torius e Alaïs verificavam a situação em Gahari.
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A Ira dos Imortais
FantasyEm um mundo onde a imortalidade é um privilégio, seres mortais se dividem em raças humanas e aladas. Os alados muitas vezes se consideram superiores, mas em direitos e deveres nada diferem daqueles que não possuem asas. Em uma trama de mistérios e b...