Os cascos do cavalo de Meredith anunciaram seu retorno e o grupo sentado em volta da fogueira parou para observar. Entre as árvores, a imagem era essa: uma mulher de volumosos cabelos vermelhos montava um cavalo alvíssimo. Tanto seus cachos quanto a crina prateada do animal esvoaçavam ao bater do vento. Meredith d'Lume vestia-se quase como Hansen, mas no lugar de calças ela usava uma saia rajada de branco e preto e no pescoço levava um grande medalhão. Em um minuto haviam chegado. Ela pulou do dorso do cavalo para a terra firme, tirando de uma correia um cesto fechado. Segurou o cesto com uma mão e usou a outra para dar um meio abraço em Torius e Alaïs.
"Pensei que vocês demorariam mais", disse. "Não pela distância, mas pelo temperamento daqueles dois!"
"Também nos surpreendemos com a rapidez dos garotos, senhora", disse o alado. "A população de Lima já estava sendo guiada aos portões quando saímos de lá."
"Então não errei em avisá-los."
O sincero sorriso estampado na face de Meredith denunciava sua alegria. Descobrir quem ou o que tinha incendiado o vilarejo agora já não importava tanto. A população estava a salvo. Para os ouvidos de muitos, seus filhos haviam oferecido ajuda ao povo de Lima, ainda que somente parte disso fosse verdade. Olhando ao redor, a peregrina soltou um suspiro de alívio e piscou para Hansen.
Meredith era uma das humanas mais lindas que o sacerdote já vira. Seu rosto rosado era emoldurado pelos rubros cabelos e deixava claro que não era mulher de carregar rancor. Os traços de sua expressão eram finos, mas também marcantes – assim como sua personalidade. Apesar de toda sua delicadeza, a dama era dura com as palavras. Era assertiva com todos que ousavam desafiá-la ou que merecessem reprimenda. Ela deixou-se demorar no abraço de Hansen, lançando um beijo na face rosada do sacerdote antes de se sentar junto ao fogo.
"O terreno está bom ao norte da Mata", disse, descalçando as botas. "Os rios estão fartos e as pequenas clareiras estão bem floridas. Talvez eu volte para colher algumas ervas amanhã, precisamos de novos remédios. Alaïs pode me acompanhar se quiser."
"Com prazer, senhora", a alada respondeu.
"Encontrei também rastros recentes de algum grupo e restos carbonizados de fogueiras. Não tenho ideia de quem pode estar andando por esses lados."
"Talvez sejam os habitantes da Vala. O caminho por fora até a outra extremidade dela passa pela Mata", afirmou Hansen. "De qualquer forma, é intrigante pensar nos valanos andando sobre a superfície. Há anos ninguém avista um."
"Se for mesmo os valanos, devemos encontrar algum deles bem rápido", alertou Torius. "Os profundos não saem à luz do dia sem uma razão importante."
"Podemos enviar alguém à procura desse grupo. Não podemos nos pôr em marcha antes da caça ao lince". Meredith mantinha sua expressão mais séria. "Os candidatos precisam de nós."
"Dois deles não passam de garotos", afirmou Alaïs.
"É verdade. Porém, se demonstrarem força durante a caça, os dois também serão admitidos. Já mostraram que são capazes de superar a escassez de alimento com esse dia adicionado ao jejum."
Todos pareciam satisfeitos com os candidatos dessa vez. Eles poderiam estar encostados em alguma pedra suplicando por um pedaço de pão, mas não estavam. Permaneciam em suas cabanas aguardando o momento da caça. Seguindo o exemplo de Meredith, Alaïs e Torius removeram as partes mais incômodas das roupagens, como os casacos e as botas, e continuaram sentados nas pedras em volta do fogo.
"Ainda não temos notícias de Johan?" o alado perguntou ao sacerdote branco. Hansen fechou os olhos por um momento e, concentrando-se, respondeu ao irmão de clã:
"Não consigo sentir a presença dele. Estou começando a ficar preocupado. Já se passaram dias desde que ele partiu, sem armas ou montaria."
"Johan não volta enquanto não se sentir satisfeito. Decerto se perdeu em algum despenhadeiro", riu Meredith. "Vocês se lembram daquela vez no Pouso do Pardal?"
Todos se lembravam da vez em que Johan tinha se perdido nas alturas de um penhasco costeiro conhecido como Pouso do Pardal. Foi encontrado por dois peregrinos alados, escondido em uma saliência num dos degraus do Pouso, quase uma semana depois de ter sumido. Torius sorriu quando disse:
"Na época ele ainda não dominava a desmaterialização."
Johan era o único ser humano dos Peregrinos, e talvez o único de sua espécie, que compartilhava com Hansen a arte da desmaterialização. Ninguém sabia como e, quando questionado sobre a habilidade, Johan dava um de seus sorrisos e se esquivava da questão. Era jovem, e apesar de não ser dono dos comportamentos mais adequados, era responsável e fazia coisas que poucos homens fariam a favor do clã. Isso fazia com que fosse também um pouco convencido em outras situações. Até hoje costumava se gabar de quando matou seu lince em dez minutos de caça, com um corte rápido no pescoço do pobre animal. O corte só não tinha sido mais limpo por falta de fio na faca, por ser feita de osso.
"Esperaremos mais um dia, se ele não chegar, vamos enviar alguém à sua procura – decidiu Meredith. "Agora, vamos comer."
O aroma de peixe assado na fogueira seduzia os presentes. Estava quase anoitecendo, e a madeira alimentava as chamas de dezenas de fogueiras acesas de uma extremidade a outra do acampamento. A iluminação tornava possível enxergar a maioria dos membros do grande grupo se alimentando e conversando em pequenas rodas. Alguns eram dotados de conhecimento musical e tocavam instrumentos improvisados, para a alegria de muitos.
Geralmente cada um ficava responsável pelo próprio jantar, inclusive Meredith e Hansen, mas na época da caça ao lince era comum que vários grupos se responsabilizassem pela alimentação dos demais. Alguns eram melhores na caça, outros sabiam quais vegetais eram viáveis para o consumo. Os períodos em que visitavam a Mata da Solidão eram fartos. Apesar disso, e devido ao jejum imposto aos candidatos, aos peregrinos não faltava o mínimo de bom senso: os cinco homens eram mantidos bem afastados de onde a maior parte do grupo se encontrava, para que não sentissem o cheiro. Ainda assim, um aroma enfraquecido de peixe assado não deixava de chegar às narinas dos esfomeados.
Alaïs serviu-se de uma porção de peixe em uma tigela de madeira, enquanto Torius abocanhava um deles quase inteiro. Sentados em volta do fogo, concentrados em matar a fome, os quatro iniciaram uma conversa com os demais que por ali jantavam. Os peregrinos que tinham algum comunicado importante ou algo a dizer costumavam fazer as refeições noturnas junto aos mestres, banhados pela luz das fogueiras. Nessa noite não foi diferente. Um peregrino chamado Tomás dizia ter encontrado um viajante solitário pela manhã. O homem tinha dito ao peregrino que alguns boatos circulavam pelas bocas e ouvidos dos cidadãos que moravam em Calmaria e nas pequenas vilas ao redor do Porto de Cal.
Supostamente, os navios traziam histórias sobre uma movimentação de Carmesins em Ghäle, do outro lado do Mar Imortal. Outros diziam ter ouvido algo sobre um prisioneiro foragido, alguém de índole perigosíssima que tinha escapado dos Calabouços, uma prisão em Catharsis. O fato era que ninguém sabia com certeza o que tinha acontecido – ou se algo havia mesmo acontecido. A cada navio que ancorava no Porto, uma boca trazia uma história diferente. Tomás ainda contou que tinha encontrado um declive na extremidade sul da Mata da Solidão, onde havia notado restos de um acampamento. Quando Meredith comparou suas observações com as do peregrino, decidiram que o acampamento poderia pertencer ao mesmo grupo que também tinha deixado os rastros que ela encontrou.
Só não sabiam dizer se eram os valanos ou não.
Outro homem dissera durante o jantar que tinha avistado um grupo de alados sobrevoando a Mata mais cedo, muito altos no céu. Ele tinha achado que eram pássaros, mas uma iluminação diferente denunciou a presença de armaduras. Se os alados tinham vindo de Ghäle ninguém sabia, mas, comparando com o que ouvira há pouco, Hansen deduziu que seriam Carmesins. Também era intrigante pensar em mercenários sobrevoando céus tão longe de casa. Movimentações como essas não eram tão frequentes em Ala.
Apesar de todas as informações, eles decidiram encerrar as preocupações e descansar enquanto fosse possível. O dia seguinte reservava a caça ao lince e esse evento não era algo que um peregrino gostaria de perder para uma soneca.
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A Ira dos Imortais
FantasyEm um mundo onde a imortalidade é um privilégio, seres mortais se dividem em raças humanas e aladas. Os alados muitas vezes se consideram superiores, mas em direitos e deveres nada diferem daqueles que não possuem asas. Em uma trama de mistérios e b...