Resenhas

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Por Luiz Antonio Ribeiro

Palavra não se cria,
Se inventa.
M. M. Simão

O sublime é, via de regra, uma força centrípeta. Sua forma escapa do núcleo e inelutavelmente se espalha pelo mundo. Seu conceito já foi amplamente explorado pela filosofia, tendo em Kant uma das descrições mais belas: sublime é desmedida; é a perda completa da medida do mundo em prol de uma espécie de acordo silencioso com o todo da natureza que, no entanto, em segundos se desfaz. M. M. Simão, em Sublime Submerso, parece recompor e resgatar a ideia de sublime para o nosso tempo fazendo o esforço, ou o esperançoso exercício, de trazê-lo das trevas de nossos tempos e dizer: ele está submerso, sob escombros, mas ainda existe.

Sublime Submerso é uma coletânea de 26 poemas de M. M. Simão, publicado em 2016 pela . Os poemas, quase todos, giram em torno de temas que dizem respeito às questões que envolvem a existência humana, quase através de uma angústia irrefletida do existir, na tentativa de reencantar o mundo a partir do que ele oferece. A obra, porém, também contém poesias que partem de outros temas como o amor em suas faces, nuances e delicadezas e, inclusive, de reflexões que fazem um raio-x irônico-poético de nosso quadro político.

O que mais se destaca, a meu ver, em Sublime Submerso é uma percepção da vida, um diagnóstico das coisas do mundo que se apresenta, para M. M. Simão, através de uma ausência que não se concretiza na falta. Não há, em seus poemas, um vazio, mas uma espécie de presença-ausente, de marca de existência oca. Isto aparece diretamente nas duas primeiras poesias como Poema a Ninguém: "Eu me lembro, / Você é ninguém / (...) Ninguém aonde habita?" e A Rua: "Lá da janela do último andar, ninguém sorri". Mais a frente, a sentença é dada, taxativamente: "Ninguém é alguém."

Entretanto, o que faz a autora é buscar chacoalhar este ninguém, trazê-lo à vida, dar a ele um nome, uma existência, em um esforço que costumo chamar de "criar povo", ou inventar gentes, como se M. M. Simão criasse um bairro para si em que seus ninguéns, à la Gonçalo M. Tavares, pudessem habitar.

Pode-se ver, nesta estratégia de encantamento do mundo, que a poeta, como uma espécie de alquimista, trabalha a língua em todas as suas potencialidades em busca deste espaço criador, deste outro em que ela possa vir a se conectar. Tanto é que é recorrente em seus poemas a marca temporal da vida, como em Os Dias Esquerdos, Quinta-Feira Decadente, Uma Quase Sexta Feira. A busca, me parece, é a mesma de mais acima: encontrar dentro da rotina, dentro do cotidiano gasto da vida reles, da vida comum, a magia do mistério da existência. O que é que existe para além disso que, fatalmente, não é metafísico?

Neste sentido, a poesia de M. M. Simão, em muitos momentos retoma muitas questões, e até incorpora com fluência e frescor, a poesia de Fernando Pessoa: podemos ver desde uma pressa do mundo frente a uma necessidade de contemplação, até uma espécie de descontentamento do mundo como tal, na busca sempre infinda de que, "na natureza ínfima" algo desperte. No entanto, por mais das vezes, a esperança é pouca:

Nada de Rosas Vermelhas,
Quiçá azuis, lírios do campo,
É, nem todo são flores...
Ao menos vívidas, quanto ontem
Jamais serão!

O que me aparece com bastante força, e que a poeta parece não perceber, é que a solução para as questões existenciais e problemas de ordem prática, da vida comum, estão solucionados justamente na própria escrita da autora. Se é verdade que "palavra não se cria, se inventa", M. M. Simão já inventou as suas e, dentro de sua escrita, não se deu conta que seus próprios sublimes também estão submersos.

É possível encontrar, das entrelinhas das questões, versos magníficos, mínimos, de poesias menores que avançam por dentro da própria poesia e que, quando sobem a superfície, trazem consigo a força de um turbilhão gentil, repleto de afeto e invenção. Vemos, por exemplo, em A imersão: "Um balão amanhece em seu lugar, / Uma corriqueira indicação de porvir"; Ou em O Segredo do Fecho: "Os seus / Luz, sol e flores. / E há quem diga que não possua amores!"; ou ainda em Os Cantos Esquerdos da Rua em Vermelho: "Sou tristeza com a sua tristeza. / Preencho o meu barquinho com lembranças e evidências."

Meu poema predileto, Bom Dia, Meu Amor, é um sutil relato da apreciação de um amor enquanto dorme, ao mesmo tempo em que, como toda a força de vida, o eu-lírico opta por não deixar a vida entrar e preservar como em um sonho ou em um conto de fadas, a vida de quem dorme e, por isso, precisa ser velada:

Vire-me para o seu lado
E o vi ressonar em sonhos dos mais adoráveis
encantos,
Inquieto com o calor sublime da aurora,
Empurrou o cobertor de retalhes à mostra de coloridas plumas
e a sua inquietude,
Afligiu-me também,
Transformando em ansiedade, as lembranças
de dias tranquilos
E, ainda assim, desisti de acordá-lo
Por medo de assustá-lo e arruinar o seu hoje.

Sem se dar conta, M. M. Simão apresentou sua utopia: um não-fazer que preserva a vida, um hoje, num jogo em que Bartleby para sempre diria "prefiro não". É desses meandros poéticos que Sublime Submerso se faz, em uma batalha singela com um mundo que parece não atentar para a poesia, mas que na caneta da poeta, não só se atualiza como ganha matéria. Sobrevive porque é forte, vive porque é bom viver, afinal, se a vida é movimento, "Não há eternidade, / Apenas vento".

Publipost do Blog Notaterapia

Link: http://notaterapia.com.br/2017/03/19/sublime-submerso-sensivel-poesia-de-m-m-simao/

Sublime Submerso (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora