"Se a nota fiscal está em ordem libere o veículo!"

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Existem muitas coisas que deixam um homem estressado. Fazer hora extra sem remuneração quando devia estar de folga, pegar o transito das seis, descobrir que é corno, parar em uma batida policial, todos são exemplos de coisas que estragam o humor de um homem.

No caso de Juarez todos os exemplos acima se qualificam.

Havia acabado de chegar do trabalho e imaginava fazer uma surpresa para a mulher, mas quem acabou surpreendido foi ele mesmo ao encontrá-la com um homem dez anos mais moço e vinte quilos a menos em sua cama.

E a maior frustração: não poder dar um fim decente na maldita (e no maldito) porque o telefone tocou, mandando fazê-lo uma entrega urgente de última hora.

- Saia da frente, sua vaca gorda! – disse o gordo Juarez para uma mulher (que nem sequer era gorda) que demorou a arrancar depois do farol ficar verde.

Ele não costuma ser grosseiro no transito, mas um homem nessas condições tem o direito de extravasar. Era para estar em casa, descansando! E descansando dando uma boa trepada na sua mulher!

Agora o que lhe restaria seria punhetar dentro do caminhão na hora que o transito travar de vez, não fosse um jovem soldado da policia militar apontando para seu caminhão e fazendo sinal para encostar.

Seu estresse está completo.

Mas ele sabe ter calma nestes momentos. Não é a toa que é o motorista numero um da rede de restaurantes.

- Boa tarde – disse o caminhoneiro gordo e bochechudo, com um bigode espesso e a cara inchada ao jovem policial.

- Boa tarde. Documentos, por favor.

Juarez rapidamente saca o documento do caminhão e os seus próprios documentos, que ele tem certeza estarem tudo na mais perfeita ordem. Tem de estar, senão ele não seria o caminhoneiro preferido, requisitado em suas (poucas) tardes de folga. O policial os pega, sem demonstrar nenhuma emoção, e se retira.

O caminhoneiro tem alguns minutos para refletir na sua vida, na sua recém-descoberta cornitude, mas não chega a pensar no futuro.

Começa a tocar uma de suas músicas favoritas na rádio, e ele prefere dedicar sua atenção a ela.

- Muito bem, senhor Juarez! – diz o policial, que acabara de retornar – os documentos estão em ordem. Agora precisaria ver sua carga e as notas fiscais.

Juarez olha para o rapaz, sério.

- Soldado, aqui está a nota fiscal. Como o senhor pode ver, trata-se de carga viva. Não sei se seria uma boa ideia abrir o baú do caminhão.

- É necessário sim.

Juarez sai do caminhão. Já passara por situações semelhantes antes, e sabia que um caminhão com o enorme logotipo da "Antropocentrismo" nunca abria as portas traseiras.

Pelo menos não para um jovem soldado.

- Rapaz, eu insisto. Não acho que eu deva abrir esta porta. A nota está aí, está tudo certo.

O policial olha a nota fiscal novamente. Descrevia sete "peças vivas", com seus pesos e tamanhos.

- Vou insistir novamente para o senhor abrir a porta.

- Será que você pode chamar um superior seu?

- Estou ficando impaciente. Abra a porra da porta!

Dizendo em voz alta, saca seu revolver e o deixa em mãos. Seu olhar é determinado.

O grito atrai a atenção dos outros policiais, que imediatamente se dirigem para perto do companheiro, todos com armas sacadas.

Juarez está realmente considerando aquele dia um sério candidato a "dia mais azarado do ano", e ainda está em abril. Olha em volta, assustado com toda aquela multidão fardada e armada, que o olha com desconfiança. Sabe das ordens: evitar ao máximo que a carga seja aberta.

Mas há uma ordem acima desta: não agir fora da lei. Que os patrões dessem conta dos problemas que aquela carga aberta traria.

- Tudo bem, tudo bem. Eu abro a porta. Sem violência, ok? Você verá que não há um único item dentro do baú que não corresponde à nota fiscal.

Isto ele tem a seu favor. Todas as peças vivas estão criteriosamente descritas, em peso, tamanho, raça e características marcantes. Tudo rigorosamente dentro das normas da Receita Federal.

O soldado que o abordou foi junto. Ainda carrega a arma, desconfiado. Juarez coloca a mão na maçaneta da porta e olha uma última vez para o rosto do soldado. Não há mudança em sua expressão. Aquela porta será aberta.

Juarez abre uma pequena fresta. O suficiente para que um pouco de luz adentre o interior do baú do caminhão, permitindo que uma das cargas vivas, que está pendurada de cabeça para baixo, seja visualizada rapidamente pelo soldado. Um rápido instante, para logo em seguida uma mão poderosa fechar a porta.

- O que está acontecendo aqui? – disse o capitão, furioso.

O soldado está perplexo, assustado.

- Eu perguntei o que está acontecendo aqui, soldado!

- Ca... capitão! Ali, no baú...

- O que tem a porra do baú? A nota. O senhor tem a nota? – perguntou ao Juarez.

- Tenho sim senhor, está em mãos.

O capitão pega o papel, emitido por uma impressora limpa e perfeita, com cada numero perfeitamente visível.

- Muito bem, pode prosseguir.

- Mas capitão... – disse o soldado.

- Se a nota fiscal está em ordem libere o veículo!

- Mas...

- Esquece o que você acha que viu e volte ao seu posto. Temos ainda mais duas horas de serviço e não quero perder mais tempo com este veículo.

O soldado obedece, sem olhar para Juarez.

- Obrigado! – disse Juarez – posso ir agora?

- Pode sim – respondeu o oficial - É para o novo estabelecimento, o que abriu este mês?

- É sim. E era meu dia de folga.

- Hoje também era para ser minha folga. Vou aproveitar para conhecer este novo restaurante hoje. Tenha um bom dia.

- Obrigado, boa tarde.

E Juarez põe o caminhão em movimento, com sete peças de carga viva para serem entregas.

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