"Pode deixar comigo! Comigo e com o meu cutelo!"

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O estranho açougueiro admira o objeto em suas mãos com verdadeira adoração. Acaricia, beija, sente como se fosse um cachorrinho, que retribuísse todo o carinho que a ele é dado com a mesma devoção.

- Oh meu querido! – suspira ele, abraçando seu objeto de adoração – o que eu faria sem você? O que seria de mim sem você?

O objeto em questão é um enorme e afiado cutelo, que junto com seus impressionantes dois metros de altura e mais de cento e cinquenta quilos formam uma imagem intimidadora.

Imediatamente o açougueiro levanta a sua ferramenta, coloca a outra mão em seu peito e, soltando o ar e revelando uma voz de tenor, solta um pequeno canto, que ecoa pelo ambiente todo revestido de cerâmica:

"Ah! O meu cutelo!

É tão belo!

Quando ele fatia!

Tem a minha empatia!"

E então, juntando novamente seu fôlego, começa a fatiar uma peça inteira que está em cima de sua mesa, cantando palavras monossilábicas que lembram golpes:

- Zack! Zump! Paff! Puft! Zarg! Duff! Back! Bump!

Repete o pequenino verso de palavras monossilábicas repetidas vezes, no mesmo ritmo que seus braços trabalham. Aos poucos a peça única de carne vai se transformando em uma porção de bifes, perfeitamente fatiados, milimetricamente. Ao redor, o piso de cerâmica branco aos poucos começa a ser tingido de sangue, assim como algumas partes dos azulejos.

Mas o açougueiro não se importa com a sujeira. Ele está feliz, fazendo o seu trabalho. É um homem que ama o que faz, e o faz muito bem.

E, novamente levando a mão ao peito e erguendo seu instrumento, agora banhado em sangue, canta:

"Ah! O meu cutelo!

É tão belo!

Ele parte os ossos!

Até mesmo os mais grossos!"

Faz uma pausa. Leva a grande e pesada lamina até a pia, onde cuidadosamente começa a lavá-lo. Passa a água, ensaboando cuidadosamente a faca, fazendo o brilho retornar, até poder enxergar o reflexo de seus dentes no metal.

- Chuá! Chuá! Chim! Chuá! Esfregar, esfregar, depois enxugar!

Ao terminar, volta a abraçar e a beijar o cutelo, como se fosse seu filho, sua mulher amada, sua própria mãe. Beija com carinho, com paixão e com adoração.

- Como você é belo, meu querido! Eu jamais deixarei que algo aconteça a você!

De repente a porta do matadouro se abre, e um homem elegante, calvo, na casa dos cinquenta anos e trajando uma roupa social completa entra no ambiente. Olha para o canto, onde ainda há um animal vivo esperando o abate:

- Trate de terminar o serviço logo, a cozinha precisa das peças!

- Pode comigo! Comigo e com meu cutelo!

O homem dá com os ombros. Já desistiu de tentar entender este sentimento há muito tempo. Assim que a porta de fecha o açougueiro canta:

"Ah! O meu cutelo!

É tão belo!

Muito bem ele corta!

Deixa a carne bem morta!"

O abate está ali, encarando tudo aquilo, acorrentado na parede. Apenas olha assustado para o enorme açougueiro que se aproxima, com um enorme sorriso, com o cutelo afiado e pesado.

E, com um único golpe, lhe arranca a cabeça.

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