Helton Laurentino Silva
Revisão do conto "Clic" publicado originalmente na Primeira edição da Mostra Ecos, por Helton Laurentino Silva
Preciso correr, corro. Ruas, quadras, esquinas, percorro todas e chego a lugar algum. O peso do revólver descarregado batendo em minha coxa me lembra do que fiz a cada passo, as roupas manchadas de suor e sangue tem o pior cheiro do mundo, minha cabeça dói. Desta vez caiu a casa antes de cair a ficha. O destino me põe em frente à loja de conveniência da velha gorda. A sede me leva até a geladeira, a necessidade me leva ao álcool. Pego uma garrafa, arranco a tampa e bebo devagar enquanto a velha pega o telefone e disca algum número. Apoio as costas na porta da geladeira e deslizo até chão, deixo o cansaço me derrubar. O álcool torna tudo mais fácil de suportar. Começo a lembrar de como tudo começou há cerca de dois meses atrás.
Assisto a mim mesmo como a um filme. Eu, sentado num cubículo, tão apertado que mal podia olhar para os lados, atendendo mais ligações por dia do que um ser humano são deveria atender. Ligações de pessoas indignadas, insatisfeitas, nervosas. Depois de um tempo a gente se acostuma com a raiva, com a indiferença, era o único requisito para se trabalhar ali no final das contas, o computador que ficava no cubículo tinha todas as respostas
Éramos 15 atendentes naquele setor, eu não conhecia metade deles. A maioria não ficava nesse tipo de serviço por muito tempo, tinha gente entrando e saindo da firma todo mês. Na hora do café era comum encontrar um rosto novo rodeado de caras cansadas. Homens, mulheres, comunicativos ou acanhados, havia gente de todo tipo chegando com as mais variadas expectativas. O desfecho, porém, era sempre o mesmo, os sorrisos eram puxados para baixo com o passar das semanas, o entusiasmo não era páreo para aquela morosidade.
Eu tinha meu próprio remédio contra aquilo, levantava todo fim de tarde e ia acender um cigarro no terraço. Não era da nicotina que eu precisava, só de uma deixa para poder perambular sem ser importunado, colocar as pernas para funcionar. Foi numa dessas pernadas que eu a conheci.
Madalena era a garota que trabalhava no cubículo ao lado. Em pouco tempo ela havia conquistado a simpatia de todo mundo, falava bem, muito extrovertida. De vez em quando eu a encontrava no terraço durante as minhas escapadas. Ela era uma pessoa bem vivida para a pouca idade que tinha, falava sobre qualquer assunto, sabia de tudo o que estava acontecendo na cidade.
Eu sou do tipo que fala pouco, que acaba sendo um bom ouvinte por falta de ter o que falar. Ela parecia gostar disso, e eu também. Passamos a nos ver com certa frequência nos nossos intervalos e a procurar um ao outro, tínhamos criado certa afinidade ao ponto de eu tê-la convidado para tomar alguma coisa mais tarde naquele dia, mesmo assim me surpreendi quando ela aceitou, geralmente elas sempre têm algum compromisso de última hora esquecido na agenda.
Saímos depois de todo o pessoal da sessão ter ido embora, um pedido dela que eu não questionei. Ela me disse que conhecia um Pub ali perto, mas que antes precisava passar em um lugar, eu disse que por mim tudo bem. Fomos até uma loja de conveniência que ficava numa esquina que eu evitaria passar sozinho a noite, a única funcionária do lugar era uma velha gorda de cabelos grisalhos. Madalena entrou e acenou para a mulher, que retribuiu o cumprimento com um resmungo. Entrei logo em seguida e vi que ela andava devagar entre as prateleiras, vasculhava com os olhos as poucas gôndolas da loja. Pensei em oferecer ajuda quando ela parou e apontou para algumas barras de chocolate, esfregou as mãos, abriu a bolsa e despejou tudo dentro.
Senti como se algo tivesse sido tirado de mim naquele momento. Meu coração palpitava, um calafrio percorreu a minha espinha. A ideia de alguém ter presenciado a cena me revirou o estômago, olhei com discrição ao redor e tudo que vi foi a velha, ocupada lendo uma revista de fofocas. Senti algo puxar meu braço, instintivamente atirei um soco sem jeito nem força na mesma direção. Percebi tarde demais que tinha acertado Madalena, ela me encarava sem expressão, com a bochecha direita vermelha e um filete de sangue escorrendo pelo canto da boca.
Não sabia o que dizer, não disse nada, ela sorriu. Um sorriso amplo, daqueles que só a felicidade sincera consegue rasgar no rosto das pessoas. "Vamos?" Ela perguntou. Baixei a cabeça e fui levado pela mão até o caixa. Ela pegou um pacote de balas e perguntou a velha quanto era. "Três". Tirou uma nota de cinco, deu a velha e dispensou o troco.
Fomos até o Pub sem trocar uma palavra. Ela agarrada ao meu braço com a cabeça apoiada em meu ombro o tempo todo. Eu olhando para o vazio, um caminhão de pensamentos confusos passava pela minha cabeça. A educação que meu pai me deu não aprovava o que fiz. Apontava o dedo pra minha cara e me mandava repreendê-la e, se eu fosse homem o bastante, entregá-la a polícia. Dizia também que eu deveria me envergonhar de ter esbofeteado aquele belo rosto, isto não é coisa que homem faça. Mas a verdade é que a lembrança daquele sorriso insistia em pôr em dúvida tudo isso. Sentamos no balcão do Pub e ela pediu duas cervejas. O garçom pareceu perceber o hematoma que havia se formado no rosto dela e perguntou se estava tudo bem, me olhando discretamente de soslaio. "Dei de cara com uma porta", ela respondeu sem dar margem para novas perguntas. Trocamos um breve olhar, compartilhamos um sorriso.
A rotina não resistiu aos traumas causados por um crime que faria um adolescente problemático gargalhar. Meus dias se resumiam aos minutos que eu passava no terraço fumando um cigarro que eu não gostava falando sobre o que eu não entendia com a pessoa que eu desejava. Tínhamos um pacto não declarado, nunca falávamos sobre o ocorrido naquela loja nem sobre o que aconteceria depois. Ela insinuava que tinha vontade de sair para algum lugar, eu a convidava, esse era o nosso código.
Pouco importava o destino, bastava que houvesse algum lugar no meio do caminho onde desse para levar algo sem pagar, ela era fissurada por isso. Se atentava a disposição das prateleiras, a organização das gôndolas, a fisionomia e os trejeitos do atendente. Eu não me importava com nada daquilo, só me interessava o que vinha depois. A palpitação, o estômago revirando, a espinha gelando, era o que vinha me mantendo vivo durante as últimas semanas. Não importava o valor nem o que era, o ato era tudo.
Hoje de manhã acordei decidido a fazer diferente. Peguei o calibre 38 herdado do meu avô e meti no bolso da jaqueta. Esperei pacientemente até ficar a sós com ela no terraço para mostrar a peça. Pensei que ela fosse agir de outra forma, por um momento achei que ela fosse correr, mas ela apenas permaneceu parada, em silêncio, encarando a arma com um olhar apreensivo. Passamos alguns minutos em silêncio, o ar ao nosso redor dava a sensação de estar cada vez mais pesado. Tomei a iniciativa e a mandei vir comigo mais tarde, ela recebeu a ordem com um olhar grave e um ligeiro aceno de cabeça.
Voltamos a nos encontrar e ela ainda tinha a mesma expressão apreensiva de antes, sorri e disse que tudo ficaria bem. Caminhamos por ruas escuras até que eu avistei o alvo. Uma mercearia. Ela estacou quando nos aproximamos do lugar. Coloquei a mão por cima do bolso do casaco e senti a forma alongada do revólver, com ele em mãos eu podia tudo. Puxei-a pelo braço com entusiasmo e entramos.
O atendente era um sujeito magro, de bigodes longos, usava um boné de time de futebol. Olhei ao redor e não notei mais ninguém no lugar, todas as persianas estavam fechadas, havíamos chegado pouco antes do horário de fechamento. Puxei Madalena até os fundos, não queria deixar o homem esperando muito para ir embora. Toquei novamente a arma e senti uma necessidade urgente de vê-la, me certificar de que ela ainda estava lá e não era uma ilusão. Tirei-a devagar do bolso e a coloquei contra a luz, senti meu coração acelerar e o gelo percorrer minha espinha, como da primeira vez.
Ouvi um estampido e minha visão ficou turva. Limpei os olhos com as costas das mãos e vi que era sangue. Madalena jazia estirada no chão e tinha um ponto escuro bem no meio da testa, os olhos bem abertos e os cabelos empapados de sangue. Virei-me na direção do balcão, o magrelo havia sumido. O cheiro da pólvora queimada me levou até ele, estava no corredor ao lado, havia empurrado algumas latas de óleo para o canto e aberto uma fresta para poder nos ver, minha ansiedade deve ter entregado tudo. A fumaça ainda não havia se dissipado do cano da arma dele quando ela foi apontada para mim. "Clic". Nada aconteceu. O homem apertou o gatilho mais uma, duas, três vezes, nada além daquele som saiu da arma. Foi engraçada a maneira como ele arregalou os olhos quando nos encaramos.
Ficamos assim por algum tempo, só se ouvia o som das geladeiras no fundo da loja. Levantei o braço devagar, procurei manter o cano alinhado, minha mão tremia muito. Eu tinha o homem que matou minha mulher na mira, mas nem um pingo de coragem para apertar o gatilho. Mirei na janela à esquerda dele, fechei os olhos e puxei o gatilho. "Clic". Tinha me esquecido de que sem balas, sem tiros. "Clic-Clic". Nada. A certeza de ter uma arma descarregada em punhos me encheu de coragem. Desta vez mirei na cabeça do homem, a tremedeira havia passado. Ele merecia dois tiros, um por mim e outro por Madalena, isso aí. "Clic-BLAM".
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Ecos Revival
Short StorySeja por uma questão de trazer as origens da Ecos para aqueles que agora chegam ou mesmo para recordar junto com os mais velhos, percebemos a necessidade de fazer o registro de nossas memórias. Assim nasceu a ideia de fazermos essa Edição Especial d...