Nossa família

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Rosca J. R. Tudor

  Revisão do conto "Nossa família" publicado originalmente na Segunda edição da Mostra Ecos, por Rosca J. R. Tudor.


Eu sou o Haroldo, macho e hétero

Passei as férias visitando meu avô paterno. Eu gostava do velho, mas isso era uma espécie de castigo disfarçado.

Meu nome é Haroldo, que é nome de velho ou viado. Imagine quando eu estava na terceira série e os colegas descobriram o personagem criado por Chico Anísio. Minha mãe, amante de História, insistia para eu explicar aos meninos que esse foi o nome de um grande rei viking. Meu pai dizia para abrir a cabeça do garoto mais forte da turma com um tijolo e tudo se resolveria. Acontece que, para mim, era difícil explicar qualquer coisa pois, além de nessa idade a zoeira sempre ganhar da razão, eu não tinha muita afinidade com a fala. Já na primeira série ganhei o apelido de Aranha, que veio de Boca de Aranha, originado do fato de eu nunca falar, consequentemente ali estaria cheio de teias de aranha. Minha falta de aptidão comunicativa não era originada da burrice. Não entenda mal, eu era burro, o maior problema foi a extrema timidez devida, principalmente, a meu porte físico. Isso explica também minha dificuldade em resolver as coisas na base da violência, como meu pai sempre estimulava. Até a quarta série eu era baixinho, menor que qualquer menina da minha classe, e muito gordo. Não um gordo engraçado e simpático, era idiota demais até para isso.

Com o tempo a coisa não melhorou. Da quinta para sexta série fui submetido a um tratamento de hormônios para ganhar altura, o que funcionou. Não fiquei alto, mas pelo menos entrei na média. Porém engordei ainda mais e minha feiura também aumentou.

Meu pai foi um renomado major da Força Aérea Brasileira. Conseguiu uma faixa preta de Caratê e uma série de troféus antes dos 17 anos além de quase ir para as Olimpíadas. Suas menores notas estavam acima de 8 e meu avô sempre contava orgulhoso como meu pai tinha todas as meninas em suas mãos. Contava ainda mais orgulhoso como ele conquistou minha mãe, que era a garota mais cobiçada do bairro. Sim, meus pais foram um casal de cinema e ainda nem comecei a falar sobre minha irmã. Se sou assim é porque a fizeram com tudo de melhor e sobrou eu, a placenta. E Placenta era como as amigas de minha irmã me chamavam. Doía como minha irmã sempre me tratava bem e defendia de todos. Nunca entendi se era por compaixão ou amor verdadeiro. O que mais doía era minha estupidez com ela. Mesmo assim não tirava o sorriso de seu rosto.

Sendo a vergonha de meu pai e o fardo de minha irmã vocês podem começar a entender como minha autoestima se desenvolveu. Não bastando isso minha mãe era a professora de História em minha escola. Mãe super protetora, achava que eu podia ser tudo o que quisesse, bastava ter vontade. Realmente me esforçava e obviamente ela percebia isso, pois burro era só eu, mas não faltou por tentar incentivar. Tudo para ela era uma questão de método e, sem querer me fazer de vítima, fui sua melhor cobaia. Tenho certeza que ela se frustrava pela maneira que minha irmã aprendia tudo sem sequer se esforçar ou alguém a ensinar. Até que ela não era essa maravilha toda, mas lembremos que dois anos depois dela nascer eu vim ao mundo. O fato de que nosso contraste a fizesse parecer mais maravilhosa para todos talvez pudesse explicar um pouco do seu amor para mim.

Quase reprovei a oitava série. Graças a um mutirão de pessoas me ajudando a estudar intensivamente, por um bimestre inteiro mais a recuperação, cheguei ao primeiro colegial. E é nesse contexto que estou passando as férias com meu avô.

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