Luiz Mariano
Spin-off do conto "Palimpsesto" publicado originalmente na Primeira edição da Mostra Ecos, por E. Reuss
Manhã, março, Guaratiri, perto da rodovia SC-186, 1996. O padre Tadeu celebra uma missa numa igreja. Pouca gente no local; uma velha com um vestido rosa, um homem com um tosco bigode, acredite, amarelado; alguém dormindo ali perto. Muito em breve alguém irá morrer nessa igreja.
Permita-me apresentar; sou Deus. Sim. Isso mesmo que você acabou de ler: Deus. O tal, o que criou tudo. O Todo-Poderoso, o que vive para sempre, eternamente e sei lá mais o quê. Pois é. Chocado?
Ora meu caro, minha cara, veja bem: resolvi escrever um texto, e é isso aí. Estou escrevendo sobre um momento específico, essa missa que está acontecendo agora, agorinha, exatamente às sete horas, vinte minutos e 15 segundos, 16, 17, 18... você entendeu o ponto. O padre Tadeu está fazendo a primeira leitura, do livro de Reis, antigo testamento. Os católicos são engraçados. Estranha coincidência, aliás, o fato de que, na Sagrada Família deles, todos são virgens, e a Igreja católica ver com certa repulsa o sexo... Não, eu não sou Jesus (pensem em alguém com mania de grandeza; pensou em Jesus? Boa meu irmão, minha irmã!), nem Alá, nem o Espaguete voador. Os ateus são tão hilários quanto os católicos: transformam a ciência em religião e afirmam que não existo. Que interessante! O fato de eu não existir impediria esse texto de estar sendo escrito.
Mas vamos à cena; esta faz parte de um conto que li, uma boa história. Ora, num dado momento o autor afirma que eu, Deus, teria me esquecido das pessoas que oram e pedem misericórdia. Ora, claro que não! A comédia humana é a minha maior diversão em toda a eternidade. Talvez, a minha maior criação, os humanos. Desde que chutei a bola, o big bang, fui vistoriando tudo o que foi se fazendo, dando uns retoques aqui, uma lapidada ali... Agora, o que a humanidade definitivamente errou foi em conferir a mim benevolência absoluta. Não meus amigos, me desculpem: não sou a infinita misericórdia ambulante, embora ache a história muito bonita e comovente.
Isso, porém, não me impede de ter senso de humor. Vejam o exemplo clássico, o ornitorrinco; ou todas as vezes que você perdeu o ônibus por questão de segundos; seu primeiro encontro com aquela beleza, e um passarinho caga na sua cabeça. Acho que você está entendendo.
Uma das teorias que mais se adequam ao meu jeito de ser é o que denominam "lei de Murphy". Parafraseando a bíblia, seria algo como "caiam mil à esquerda e dez mil à tua direita, tu serás atingido". O principal erro dessa teoria, é que só percebem o lado negativo da coisa. Mas se eu fosse assim, dificilmente eu deixaria ser completado o projeto da Capela Sistina, por exemplo. Coisa linda, aquela. Ou seja: sou aleatório. O que decido, acontece.
E as crianças que morrem de fome na África, você se pergunta. Ora meu caro, Não dá pra culpar tanto um pai pela conduta do filho, certo? Dizem que metade do que determina é a genética, essas coisas. Eu só fico aqui assistindo, quando me dá na telha eu mudo, quando eu não gosto e tô com preguiça de fazer algo eu mudo de canal, simples assim.
Voltando à igreja da pequena Guaratiri. O pobre Tadeu, que figura. Péssimo sermão que passou pros ouvintes. Eu prefiro "sermão" que "homilia". Tem que dar uma dura nas pessoas, ué! Onde já se viu, as pessoas vão a missa pra quê, passar a mão na cabeça, encontrar os amigos? Missa é coisa séria, de vida e morte. Era pra ser. E hoje será... Mas não agora! Agora eu vou refletir sobre o Otávio Mendes, um dos personagens do conto que falei.
Otávio Mendes. Adorei esse nome. Gosto do som das palavras. "Bovídeos". Rapaz, de onde o autor tirou essa? Bovídeos!! Eu teria colocado bois, vacas, mas realmente, muito estiloso, "bovídeos". Isso que é o legal de ler o que os outros escreveram, você sempre encontra uns achados nos quais nunca pensaria. Tiro várias ideias da humanidade. Pode ter certeza que em qualquer momento eu vou fazer alguém falar "bovídeos" do nada. Sabe aquelas coisas que os humanos falam e fazem aleatoriamente, que o Freud chamou de "ato falho"? Nada, sou eu. Pode ver que tem certas horas que a pessoa ia dizer que está casado, e fala, sem querer, que está "cansado". Coincidência, não? Aliás, sacanagem o que o Freud fez, essa coisa de "inconsciente". Tem até uma coisa ou outra que é o tal do inconsciente, mas muitas vezes sou eu e botam a culpa nele! Mas eu estava falando do Otávio Mendes.
Que rapaz estranho, esse Otávio. Bom de briga. Que domínio, que calma, que presença, a forma como lidou com os policiais. Me lembrou uns filmes que assisti. "Onde os fracos não têm vez". A calma do cidadão! Invejo isso. Eu sou mais esquentado. Ainda bem que sou invisível. Penso que a cena dos policiais abordando o Otávio daria uma boa cena de filme. Podia ser até o mesmo ator, o Javier Bardem. Será que o autor pensou nisso? Ele deve ter imaginado a cara do dito cujo. Talvez não tenha sido com o mesmo ator. Enfim.
Agora, você talvez pense que não sou eu que escrevo este texto. Poderia ser alguém se passando por Deus, um escritor, tendo essa audácia. Ora, meu caro, você já ouviu falar na palavra "palimpsesto"? Até ler o conto com esse nome, eu mal me lembrava de ter visto ela alguma vez. Em uma procura qualquer no google (sim, eu uso google), pode ser dito que palimpsesto é aquilo que raspa para ser escrito em cima. Digo para você, que raspei quem escrevia esse texto. Encontrei o computador aberto, o documento do Word, e a audácia escrita: um escritor fajuto, um monte de carne, se passando por mim! Um estrume, um falsário, cidadão infeliz! Vou te dizer, Isso me deixou com muita raiva! Você sabe o que faço quando estou com muita raiva? Já viu notícias na televisão, de crueldades, atrocidades que alguém fez? Ou mortes sem motivo, seus parentes dizimados em falecimentos tão bestas, tão ridículos? Não, não é absurdo, aleatório, não. Sou Eu! Fui eu que matei. Fui eu que joguei aquele carro desgovernado no cidadão de família que passeava na calçada. Às vezes acaba respingando em gente, bicho, que não tem nenhuma culpa, que não tinha nada a ver com a situação, do outro lado do oceano, mas quer saber? Não estou nem aí! Moralidade? Olha esse escritorzinho de merda, se passando por Deus, por mim! Raspei, raspei ele da face da terra, raspei seus cabelos, ossos e miolos, raspei inclusive seus escritos, porra! E você vai continuar aí lendo? Vai, vai lendo, vai lendo aí confortável, e lembre-se de mim quando for sair na rua, ou quando alguém te der uma notícia triste.
(Ah, um último detalhe. Não é curioso a semelhança entre as palavras"palimpsesto" e "incesto"? Tão curioso quanto isso é colocar "incesto" no google, para ter certeza do significado, e noventa e nove por cento dos links que aparecem na primeira página são sobre vídeos pornográficos de incesto. E isso é normal. A humanidade é tão inventiva!).
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Ecos Revival
Short StorySeja por uma questão de trazer as origens da Ecos para aqueles que agora chegam ou mesmo para recordar junto com os mais velhos, percebemos a necessidade de fazer o registro de nossas memórias. Assim nasceu a ideia de fazermos essa Edição Especial d...