– Que gosto é esse em minhas águas? – uma voz espalhou-se por ali. – Não é peixe, não é humano, nem cagado. E é insosso com pouco sabor. Nem sangue tem.
– Desculpe – falei – Eu sou de uma outra lagoa. Deve ser eu.
– Um compadre? Me conte sua história. Nunca tenho com quem conversar.
– Acabei de me sentir vivo, não saber de minha história é minha história. Mas eu sei que sou um encantado e um pagão.
– Humm, eu sou um encantado também – disse ele. – Mas nada pagão.
– E pode? Pode-se ser uma coisa sem ser a outra?
– Claro que pode.
– Me conta como.
– Claro – a voz ao meu redor se juntou a minha frete num ponto pálido e solido. Ele era uma mistura de homem e peixe. Os olhos e a boca eram de peixe e o corpo era de um humano muito branco. A cabeça era maior que o corpo, enorme em forma de cuia oval e era coberta por cabelos, que cresciam até mais longe que seus dedos membranosos de sapo. – Meu nome é Crispim, mas todos me chamam de Cabeça de Cuia.
– Como pode ter dois nomes, não é certo ter apenas um? Conheci hoje um pássaro e um Karaibebé, e eles tinham apenas um nome.
– Olha só, lendas tem sempre mais de um nome. Crispim, é meu nome de "não pagão" e Cabeça de Cuia é meu nome de Encantado. O que me define como "não pagão" é eu ter sido batizado quando homem. Isso faz de mim um monstro cristão encantado e não um pagão encantado.
– Você nem sempre foi um encantado? Então nós nos tornamos encantados e não nascemos encantados. Carcará me disse que pagãos nascem uma vez, mas encantados nascem duas e morrem uma.
– Cristãos também nascem uma vez. Para se tornar encantado é necessário nascer de novo. E para nascer de novo é preciso morrer e ai renascemos como encantados. Assim vivemos duas vidas e uma é deixada pra traz. Eu me tornei encantado quando matei minha mãe.
– O que é uma mãe? É a segunda vez que ouço essa palavra.
– É quem nos cria. Também se é comum as vezes ter um pai, mas eu não fui criado por um, então só tive mãe. Minha mãe era viúva.
– Por que você matou sua mãe?
– Não quero falar sobre isso – ele se reprimiu. – Me arrependo do que fiz.
– Então, me explique como se tornou encantado.
– Quando matei minha mãe, ela antes de morrer me amaldiçoou em nome do Santíssimo. E suas preces foram atingidas. Isso também faz de mim um monstro cristão e não pagão. Eu morri e a maldição faz com que eu fique ligado a este rio, sobre esta forma de encantado, até que eu devore sete Marias virgens.
De trás do monstro, vi um jacaré capturar um cagado e sangrá-lo nos dentes.
– Não seria ruim devorar pessoas?
– Nem tato – ele respondeu. – É um gosto vermelho que terei de tragar para deixar de sentir dor – ele passou a mão na enorme cabeça, e senti que teria fechado os olhos de tanta angustia se tivesse pálpebras. – Além disso, percebo agora como monstro encantado, que os humanos fazem coisas piores.
– Eles também comem uns aos outros?
– Alguns sim, mas não é disso que estou falando. Como monstro, percebo que comer pessoas não é tão ruim, se comparado a ser dono de pessoas. Existem humanos que são donos de outros humanos como de animais. E quanto mais humanos ele tem, maior é seu reconhecimento e respeito nas sociedades humanas.
– Entendi – falei. – Obrigado, agora tenho mais sabor do que já tive.
– Eu reparei – disse ele. – Se fosse uma Maria virgem, eu o devoraria até o ultimo pedaço.
– Obrigado – respondi, mas um pensamento me passou pela cabeça. – Você tem uma mãe e me falou de pai. Então eu devo ter algo assim e adoraria saber como uma mãe e um pai é, para saber o que sou. Pode me dizer onde esta sua mãe?
– Morta – respondeu Crispim. – Mas você ainda pode encontrá-la em minha antiga casa se quiser. Ela fica a margem do rio.
– Obrigado – falei – Desejo que seu sofrimento acabe. Sonhe com os karaibebés e até mais.
– Fique com Deus. Eu espero da próxima vez que nos vermos, estar como humano e dono de muitas coisas e de muita gente.
– Mas você disse que ser dono de gente era ruim! – questionei.
– Ruim pra quem é posse, não pra quem é dono – e com isso ele se liquefez.
VOCÊ ESTÁ LENDO
MAMELUCO, Existência afogada.
Short StoryA história gira em torno de um homem que desperta já adulto, na escuridão de uma lagoa. Sem memorias e incompreendendo a própria situação, ele se sente vazio, oco e insosso, sua busca se justificando na conquista do próprio sabor. "Primeiro...