Capítulo 3 - Crispim

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– Que gosto é esse em minhas águas? – uma voz espalhou-se por ali. – Não é peixe, não é humano, nem cagado. E é insosso com pouco sabor. Nem sangue tem.

– Desculpe – falei – Eu sou de uma outra lagoa. Deve ser eu.

– Um compadre? Me conte sua história. Nunca tenho com quem conversar.

– Acabei de me sentir vivo, não saber de minha história é minha história. Mas eu sei que sou um encantado e um pagão.

– Humm, eu sou um encantado também – disse ele. – Mas nada pagão.

– E pode? Pode-se ser uma coisa sem ser a outra?

– Claro que pode.

– Me conta como.

– Claro – a voz ao meu redor se juntou a minha frete num ponto pálido e solido. Ele era uma mistura de homem e peixe. Os olhos e a boca eram de peixe e o corpo era de um humano muito branco. A cabeça era maior que o corpo, enorme em forma de cuia oval e era coberta por cabelos, que cresciam até mais longe que seus dedos membranosos de sapo. – Meu nome é Crispim, mas todos me chamam de Cabeça de Cuia.

– Como pode ter dois nomes, não é certo ter apenas um? Conheci hoje um pássaro e um Karaibebé, e eles tinham apenas um nome.

– Olha só, lendas tem sempre mais de um nome. Crispim, é meu nome de "não pagão" e Cabeça de Cuia é meu nome de Encantado. O que me define como "não pagão" é eu ter sido batizado quando homem. Isso faz de mim um monstro cristão encantado e não um pagão encantado.

– Você nem sempre foi um encantado? Então nós nos tornamos encantados e não nascemos encantados. Carcará me disse que pagãos nascem uma vez, mas encantados nascem duas e morrem uma.

– Cristãos também nascem uma vez. Para se tornar encantado é necessário nascer de novo. E para nascer de novo é preciso morrer e ai renascemos como encantados. Assim vivemos duas vidas e uma é deixada pra traz. Eu me tornei encantado quando matei minha mãe.

– O que é uma mãe? É a segunda vez que ouço essa palavra.

– É quem nos cria. Também se é comum as vezes ter um pai, mas eu não fui criado por um, então só tive mãe. Minha mãe era viúva.

– Por que você matou sua mãe?

– Não quero falar sobre isso – ele se reprimiu. – Me arrependo do que fiz.

– Então, me explique como se tornou encantado.

– Quando matei minha mãe, ela antes de morrer me amaldiçoou em nome do Santíssimo. E suas preces foram atingidas. Isso também faz de mim um monstro cristão e não pagão. Eu morri e a maldição faz com que eu fique ligado a este rio, sobre esta forma de encantado, até que eu devore sete Marias virgens.

De trás do monstro, vi um jacaré capturar um cagado e sangrá-lo nos dentes.

– Não seria ruim devorar pessoas?

– Nem tato – ele respondeu. – É um gosto vermelho que terei de tragar para deixar de sentir dor – ele passou a mão na enorme cabeça, e senti que teria fechado os olhos de tanta angustia se tivesse pálpebras. – Além disso, percebo agora como monstro encantado, que os humanos fazem coisas piores.

– Eles também comem uns aos outros?

– Alguns sim, mas não é disso que estou falando. Como monstro, percebo que comer pessoas não é tão ruim, se comparado a ser dono de pessoas. Existem humanos que são donos de outros humanos como de animais. E quanto mais humanos ele tem, maior é seu reconhecimento e respeito nas sociedades humanas.

– Entendi – falei. – Obrigado, agora tenho mais sabor do que já tive.

– Eu reparei – disse ele. – Se fosse uma Maria virgem, eu o devoraria até o ultimo pedaço.

– Obrigado – respondi, mas um pensamento me passou pela cabeça. – Você tem uma mãe e me falou de pai. Então eu devo ter algo assim e adoraria saber como uma mãe e um pai é, para saber o que sou. Pode me dizer onde esta sua mãe?

– Morta – respondeu Crispim. – Mas você ainda pode encontrá-la em minha antiga casa se quiser. Ela fica a margem do rio.

– Obrigado – falei – Desejo que seu sofrimento acabe. Sonhe com os karaibebés e até mais.

– Fique com Deus. Eu espero da próxima vez que nos vermos, estar como humano e dono de muitas coisas e de muita gente.

– Mas você disse que ser dono de gente era ruim! – questionei.

– Ruim pra quem é posse, não pra quem é dono – e com isso ele se liquefez. 

MAMELUCO, Existência afogada.Onde histórias criam vida. Descubra agora