1. Capitulo
Acordo sem mais nem menos. Devagar, abro meus olhos e sinto o clarão da janela refletir direto em neles, me forçando a fecha-los imediatamente. O relógio indicava que era pouco mais das onze horas, e então, me dou conta que mais uma vez tinha acordado atrasada para a aula. Um suspiro longo e arrastado sai de minha boca. Deito-me de volta e encaro o teto branco sem graça de meu quarto por alguns segundos antes de me levantar para ir ao banheiro.
Estava bastante frio, o chão gelado me obrigou a dar meia volta e calçar as minhas pantufas. Por um impulso, paro e fico olhando por alguns segundos o celular em cima do criado-mudo. Penso em desbloqueá-lo e ler a mensagem. A maldita mensagem que eu havia recebido às dez horas da noite de um número desconhecido. Eu não precisava procurar saber quem era, pois sabia que se tratava de mais um engraçadinho. Eu recebia mensagens ofensivas todos os dias. De todos os tipos. Sempre bloqueava antes mesmo de ler. Fechava os olhos, respirava fundo, e tentava não ligar para aquilo. Mas quanto mais se repetia, mais era difícil de não ligar. Tentei trocar de números várias vezes, mas sempre acontecia a mesma coisa. Eles faziam questão de me infernizar.
Ignoro o celular em cima da cômoda e vou para o banheiro.
Depois do banho, me visto o mais rápido possível e saio de casa.
Estava atrasada para o trabalho. Sempre quando eu chegava do colégio, ia direto para a lanchonete onde eu trabalho sem ao menos passar em casa para trocar de roupa. Muitas vezes eu nunca chegava a tempo. E para poupar o pouco tempo que me restava, sempre colocava um par de roupas limpas dentro da mochila, para que quando eu viesse pra casa, trocasse elas.
Entro dentro do ônibus e um homem alto começa a encarar descaradamente as minhas pernas. Tento ignorá-lo, mas como se já não bastasse, ele se levanta, vem em minha direção, e para ao meu lado. O odor que vinha dele era horrível. Um odor de cigarro misturado com bebidas e suor. Afasto-me um pouco e ajeito meu cabelo. Estava nervosa e com medo.
— Bom dia. — ele diz me encarando.
Não respondo. Quanto mais eu me afastava, mais ele se aproximava. Isso durou por alguns minutos. Já estava ficando com mais medo quando finalmente o ônibus chegou ao meu destino. Desço rapidamente e olho para trás. Vendo que ele estava me olhando pela janela, levanto minha mão e lanço o dedo do meio para o mesmo, sorrindo com satisfação pela cara de raiva que ele tinha feito.
— Filho da mãe. — resmungo entredentes seguindo pelo caminho.
Chego no trabalho e Kate, uma das garotas que trabalham comigo, já estava me esperando encostada no balcão. Assim que ela me avista, respira aliviada e joga o avental que estava segurando em cima de mim.
— Isso não foi bom. — diz ela com uma péssima cara. — Ele não gostou nadinha do seu atraso, Hazel. Já é a terceira vez na semana que você chega atrasada.
A sigo até a cozinha enquanto visto o avental.
— Me desculpe. Acordei tarde hoje.
Ontem tive outra crise de falta de ar. Desci as escadas, abri a porta, e fui o mais rápido que pude para a rua. A noite estava fria, e fiquei durante horas largada num pequeno banco gélido que ficava ao lado de uma árvore. Os lábios tremendo, a pele arrepiada, os olhos vermelhos, e o nariz inchado. Aquele era o meu estado. Na verdade eu torcia logo para que o dia chegasse e a noite fosse embora. Que toda essa dor fosse embora. E com tudo isso, acabei não dormindo.
Ela bufa e revira os olhos.
— Essas são sempre as suas desculpas. Acho melhor você tomar jeito ou vai acabar sem emprego.
Kate tem quase a mesma idade que eu. As vezes ela age como se fosse muito mais velha. Seu jeito mandão e rabugento a entrega que ela não é uma pessoa muito calma. Kate está aqui a mais tempo que eu. Assim que eu entrei, ela já estava trabalhando que nem uma louca sem folgas na semana. O nosso chefe não pega muito leve conosco, mesmo todas sendo de menores. E como eu precisava do trabalho, não quis protestar.
Passamos horas e horas entregando pedidos nas mesas sem nenhuma pausa. Meus pés estavam doloridos. A cada minuto, novas pessoas chegavam, e então novos pedidos eram feitos. Sem querer, Doris, que também estava no ajudando, deixou uma xícara de café quente cair no chão, espalhando cacos de vidro para todo o lado. Todos pararam para ver o que estava acontecendo e eu parei para ajudá-la sem nem pensar duas vezes. Percebi mais de perto que em seu braço esquerdo haviam leves roxos junto com alguns cortes recém-cicatrizados. Tentei acalmá-la e a levei para o banheiro dos funcionários. Havia uma razão para tudo isso, pois Doris era novata, e ela estava muito nervosa com todas aquelas pessoas.
— Está doendo? — pergunto enquanto passo um pano gelado em sua mão.
— Um pouco.
Ficamos em pleno silencio e aproveito para analisar mais de perto os hematomas em seu braço. Praticamente todo ele estava desse jeito. E em seu pescoço também haviam alguns roxos.
— Fica tranquila, — digo dando um meio sorriso. Decido não perguntar nada sobre seu braço. - isso também já aconteceu comigo nos meus primeiros dias. Você deu sorte, já que a xicara caiu no chão, não no colo do cliente.
Ela sorri e balança a cabeça.
— Eu que sou uma desastrada. Tenho medo de me mandarem embora depois dessa. Eu preciso muito desse emprego.
Lavo o pano na pia e limpo seu avental, que estava manchado pelo café.
— Eles não vão te mandar ir embora. — digo. — Assim como você está precisando desse trabalho, eles também estão precisando de mais ajudantes. Como a lanchonete está crescendo cada vez mais, dificilmente isso poderá acontecer.
Doris suspira aliviada. Entendo toda a pressão que ela deve estar sentindo. Termino de limpá-la e aproveito para arrumar meu cabelo em frente ao espelho. Haviam profundas olheiras abaixo de meus olhos. Nem mesmo o corretivo conseguiu escondê-las.
— Gosto do seu cabelo curto. — diz Doris sorrindo. — Combina bem com você.
— Demorei muito tempo para aceitar que ele está curto. — digo brincando.
— É? Por que?
Eu sabia muito bem o porquê. Quando eu estava com quatorze anos, meu pai havia chegado bêbado em casa. Estava descontrolado, fora de si, completamente maluco. Fui às pressas para meu quarto e tentei me esconder, mas mesmo assim ele conseguiu me achar. Me pegou pelos cabelos e começou a me bater, sem nenhum motivo. Me xingava de todos os jeitos. Falava que o maior erro da vida dele foi ter casado com minha mãe e me ter tido como filha. Naquele momento eu só sabia sentir nojo dele. Já não tinha mais forças para lutar. Só sabia chorar. Quando eu estava ficando inconsciente de tanto apanhar, ele finalmente parou e sentou na beira da cama. Fiquei deitada por alguns minutos no chão sentindo o ardor em meu rosto, braços e pernas. Em cerca de segundos, ele vomitou toda a bebida que tinha tomado em cima de mim. Só lembro de ter fechado meus olhos com força e gritar.
Foram os piores minutos da minha vida. Desde então eu nunca mais deixei-os crescer e sempre cortava na altura dos ombros.
Havia vômito por todo o chão do meu quarto, inclusive em meu cabelo, que na época, estava grande. Passei a madrugada inteira com lágrimas nos olhos esfregando o chão com força, tentando tirar aquele maldito cheiro.
— Hazel? — Doris chama a minha atenção.
A olho assustada e abaixo a minha cabeça, tentando me recuperar das péssimas memórias. Estava ofegante. Respiro fundo e procuro forças. Me viro em sua direção, e respondo sua pergunta:
— Porque eu gostava dele grande.
[...]
"Ansiedade é...
não conseguir respirar por medo de não conseguir respirar."

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Depois da Tempestade
Novela JuvenilHazel é uma garota sozinha e insegura. É uma adolescente como qualquer outra. Tem seus defeitos, seus medos, suas qualidades, seus sonhos, e suas expectativas. Sofre constantemente de ataques de ansiedade, e desde pequena vem lidando com esse seu mo...