Aqueles dias estavam sendo especialmente difíceis para ela, pensava Clara enquanto examinava novamente a ferida que ainda não cicatrizara entre seu abdômen e as costelas do lado direito. Ao descer de uma árvore duas semanas antes havia se desequilibrado e na queda, um graveto fincara-se mais profundo do que ela havia esperado. Lutou com um sangramento que teimava em persistir por alguns dias, até finalmente diminuir, mas, além disso, o ferimento lhe trazia outro problema: devido à dor, não conseguia mais se movimentar com a agilidade a que estava acostumada e arrumar o que comer estava se tornando mais difícil.
Assim, após alguns dias andando pelos campos e florestas da região, pensou que o melhor seria tentar encontrar algum abrigo, pelo menos até que estivesse melhor. Caminhando pelo que antes havia sido uma estrada de terra já tomada pelo mato, ela viu escondida atrás de algumas árvores, uma casinha. Escondeu-se no meio da vegetação que rodeava a construção, observando se haveria algum movimento ou indício de que alguém viveria ali, porém, ao fim de meia hora concluiu que realmente o local estava abandonado.
Era uma casinha simples, "de roça" como diriam muitos, construída a partir de tijolos de barro que após anos sem manutenção agora estavam à mostra em diversos pontos onde o reboco caíra. As janelas estavam fechadas, bem como a porta. Clara rodeou a pequena casa, afastando o mato e observando onde pisava a fim de evitar eventuais cobras que estivessem ali escondidas. Verificou que alguém pregara algumas madeiras nas janelas do que pareciam ser a sala e a cozinha, mas fora isso, a construção parecia inabitada há muito tempo. Assim, com pouca resistência, conseguiu abrir a porta dos fundos e entrou.
O local estava coberto de poeira e, embora estivesse um tanto revirado, ela se surpreendeu em ver que ainda havia alguns móveis e utensílios. Talvez por estar tão escondida pelas árvores e pelo mato o local não tivesse recebido muitas visitas de eventuais saqueadores ao longo do tempo. Cruzou o que parecia ser a cozinha, onde havia apenas uma mesa, uma cadeira, um velho fogão a gás que agora não teria nenhuma serventia além de algumas panelas e latas espalhadas em cima de uma prateleira. Entrou no cômodo seguinte para encontrar apenas uma cama e com colchão, um luxo para alguém como ela. Por mais que sua cabeça dissesse que não, seu corpo estava tão cansado que ela simplesmente se jogou na cama sem sequer se preocupar em verificar se haveria alguma aranha ou escorpião escondidos ali e caiu num sono profundo quase que imediatamente.
Quando acordou, verificou que a tarde já ia adiantada pela luminosidade que entrava pelas frestas da janela e apesar do calor incomum para aquela época do ano, sentia um frio que a fazia tremer involuntariamente. Ajeitou-se na cama e levantou a camiseta, retirando a bandagem com um unguento de ervas que improvisara em volta do abdômen apenas para constatar o que já suspeitava: a ferida ainda não cicatrizara. Franziu o cenho, preocupada: sabia que teria que agir rápido antes que a febre e a infecção piorassem. Refez o curativo, abaixou a camiseta e levantou-se, ainda um tanto zonza, para vasculhar o local em busca de algum objeto de valor que pudesse trocar na vila por onde havia passado ali perto.
Com algum esforço para se manter sobre seus próprios pés, conseguiu chegar à vila que não passava de um par de ruas onde um aglomerado de pequenas construções havia sobrevivido à ação do tempo. Em meio aos escombros, destroços e carcaças de veículos, alguns habitantes viviam ali e havia um pequeno comércio, além de um bar onde algumas pessoas estavam reunidas pelo barulho que ouvia do lado de fora. Dirigiu-se para lá e após muito tempo discutindo com o "dono" da espelunca, conseguiu trocar um velho relógio de corda e um par de óculos por uma garrafa da bebida mais forte que ele tinha no local.
Voltou para a rua, em passos lentos e oscilantes à medida que sentia a visão embaçar e o frio aumentar. Fechou o casaco já gasto e rasgado que levava, preocupada em não deixar a garrafa cair no chão. Sua visão insistia em embaralhar e embaçar o que tornava o simples ato de caminhar ainda pior tanto que chegou a trombar em uma pessoa que estava em seu caminho. Desculpou-se, olhando rapidamente para o vulto parado à sua frente, porém, com a visão tão turva não conseguia distinguir se era homem ou mulher, apenas rezava para que não fosse nenhum vagabundo querendo confusão ou... algo mais. Baixou novamente a cabeça, desviou do vulto e continuou seu caminho, concentrada em simplesmente conseguir dar um passo de cada vez.
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Por onde ela esteve? DEGUSTAÇÃO
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