Não era a primeira vez que ela vinha ali. Mais de uma dezena já subira aquela larga escada de pedra, com grupos de mármores de Lisboa de um lado e do outro, a Caridade e Nossa Senhora da Piedade; penetrara por aquele pórtico de colunas dóricas, atravessara o átrio ladrilhado, deixando à esquerda e à direita, Pinel e Esquirol, meditando sobre o angustioso mistério da loucura; subira outra escada encerada cuidadosamente e fora ter com o padrinho lá em cima, triste e absorvido no seu sonho e na sua mania. Seu pai a trazia às vezes, aos domingos, quando vinha cumprir o piedoso dever de amizade, visitando Quaresma. Há quanto tempo estava ele ali? Ela não se lembrava ao certo; uns três ou quatro meses, se tanto.
Só o nome da casa metia medo. O hospício! É assim como uma sepultura em vida, um semi-enterramento, enterramento do espírito, da razão condutora, de cuja ausência os corpos raramente se ressentem.
A saúde não depende dela e há muitos que parecem até adquirir mais força de vida, prolongar a existência, quando ela se evola não se sabe por que orifício do corpo e para onde.
Com que terror, uma espécie de pavor de coisa sobrenatural, espanto de inimigo invisível e onipresente, não ouvia a gente pobre referir-se ao estabelecimento da Praia das Saudades! Antes uma boa morte, diziam.
No primeiro aspecto, não se compreendia bem esse pasmo, esse espanto, esse terror do povo por aquela casa imensa, severa e grave, meio hospital, meio prisão, com seu alto gradil, suas janelas gradeadas, a se estender por uns centos de metros, em face do mar imenso e verde, lá na entrada da baía, na Praia das Saudades. Entrava-se, viam-se uns homens calmos, pensativos, meditabundos, como monges em recolhimento e prece.
De resto, com aquela entrada silenciosa, clara e respeitável, perdiase logo a idéia popular da loucura; o escarcéu, os trejeitos, as fúrias, o entrechoque de tolices ditas aqui e ali.
Não havia nada disso; era uma calma, um silêncio, uma ordem perfeitamente naturais. No fim, porém, quando se examinavam bem, na sala das visitas, aquelas faces transtornadas, aqueles ares aparvalhados, alguns idiotas e sem expressão, outros como alheados e mergulhados em um sonho íntimo sem fim, e via-se também a excitação de uns, mais viva em face à atonia de outros, é que se sentia bem o horror da loucura, o angustioso mistério que ela encerra, feito não sei de que inexplicável fuga do espírito daquilo que se supõe o real, para se apossar e viver das aparências das coisas ou de outras aparências das mesmas.
Quem uma vez esteve diante deste enigma indecifrável da nossa própria natureza, fica amedrontado, sentindo que o gérmen daquilo está depositado em nós e que por qualquer coisa ele nos invade, nos toma, nos esmaga e nos sepulta numa desesperadora compreensão inversa e absurda de nós mesmos, dos outros e do mundo. Cada louco traz em si o seu mundo e para ele não há mais semelhantes: o que foi antes da loucura é outro muito outro do que ele vem a ser após.
E essa mudança não começa, não se sente quando começa e quase nunca acaba. Com o seu padrinho, como fora? A princípio, aquele requerimento... Mas que era aquilo? Um capricho, uma fantasia, coisa sem importância, uma idéia de velho sem conseqüência. Depois, aquele ofício? Não tinha importância, uma simples distração, coisa que acontece a cada passo... E enfim? A loucura declarada, a torva e irônica loucura que nos tira a nossa alma e põe uma outra, que nos rebaixa... Enfim, a loucura declarada, a exaltação do eu, a mania de não sair, de se dizer perseguido, de imaginar como inimigos, os amigos, os melhores. Como fora doloroso aquilo! A primeira fase do seu delírio, aquela agitação desordenada, aquele falar sem nexo, sem acordo com que se realizava fora dele e com os atos passados, um falar que não se sabia donde vinha, donde saia, de que ponto do seu ser tomava nascimento! E o pavor do doce Quaresma? Um pavor de quem viu um cataclismo, que o fazia tremer todo, desde os pés à cabeça e enchia-o de indiferença para tudo mais que não fosse o seu próprio delírio.