III - GOLIAS

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No sábado da semana seguinte àquela em que a filha do general recebera como marido o grave e giboso Genelício, glória e orgulho do nosso funcionalismo público, Olga casara-se. A cerimônia correra com a pompa e a riqueza acostumada em pessoas de sua camada. Houve uns arremedos parisienses de corbeille de noiva e outros pequenos detalhes chics, que não a aborreceram, mas que não a encheram lá de satisfação maior que as noivas comuns. Talvez nem mesmo essa ela tivesse.

Não foi para a igreja em virtude de uma determinação certa de sua vontade. Continuava a não encontrar dentro de si motivo para aquele ato, mas, aparentemente, nenhuma vontade estranha à sua influíra para isso. O marido é que estava contente. Não seria muito com a noiva, mas com a volta que a sua vida ia tomar. Ficando rico e sendo médico, cheio de talento nas notas e recompensas escolares, via diante de si uma larga estrada de triunfos nas posições e na indústria clínica. Não tinha fortuna alguma, mas julgava o seu banal título um foral de nobreza, equivalente àqueles com que os autênticos fidalgos da Europa brunem o nascimento das filhas dos salchicheiros yankees. Apesar de ser seu pai um importante fazendeiro por aí, em algum lugar deste Brasil, o sogro lhe dera tudo e tudo ele aceitara sem pejo, com o desprezo de um duque, duque de plenamentes e medalhas, a receber homenagens de um vilão que não roçou os bancos de uma "academia".

Julgava que a noiva o aceitara pelo seu maravilhoso título, o pergaminho; é verdade que foi, não tanto pelo título, mas pela sua simulação de inteligência, de amor à ciência, de desmedidos sonhos de sábio. Tal imagem que dele fizera, durara instantes em Olga; depois foi a inércia da sociedade, a sua tirania e a timidez natural da moça em romper que a levaram ao casamento. Tanto mais que ela, de si para si, pensava que se não fosse este, seria outro a ele igual, e o melhor era não adiar.

Era por isso que ela não ia para a igreja, em virtude de uma determinação certa de sua vontade, embora sem perceber o constrangimento de um comando fora dela.

Apesar da pompa, esteve longe de ser uma noiva majestosa. Não obstante as origens puramente européias, era pequena, muito mesmo, ao lado do noivo, alto, ereto, com uma fisionomia irradiante de felicidade; e, desse modo, ela desaparecia dentro do vestido, dos véus e daqueles atavios obsoletos com que se arreiam as moças que se vão casar. De resto, a sua beleza não era a grande beleza — aquela que nós exigimos das noivas ricas, segundo o modelo das estampas clássicas.

No seu rosto, nada de grego, desse grego autêntico ou de pacotilha, ou também dessa majestade de ópera lírica. Havia nos seus traços muita irregularidade, mas a sua fisionomia era profunda e própria. Não só a luz dos seus grandes olhos negros, que quase cobriam toda a cavidade orbitária, fazia fulgurar o seu rosto móbil, como a sua pequena boca, de um desenho fino, exprimia bondade, malícia e o seu ar geral era de reflexão e curiosidade.

Ao contrário do costume, não saíram da cidade e foram morar em casa do antigo empreiteiro.

Quaresma não fora à festa, mandara o leitão e o peru da tradição e escrevera uma longa carta. O sítio empolgara-o, o calor ia passar, vinha a época das chuvas, das semeaduras, e não queria afastar-se de suas terras. A viagem seria breve, mas mesmo assim, perdendo um dia ou dois, era como se começasse a desertar da batalha.

O pomar estava todo limpo e já estavam preparados os canteiros da horta. A visita de Ricardo veio distraí-lo um pouco, sem desviá-lo contudo, dos seus afazeres agrícolas.

Passou um mês com o major, e foi um triunfo. A fama do seu nome precedia-o, de forma que todo o município o disputava e festejava.

O seu primeiro trabalho foi ir à vila. Ficava a quatro quilômetros adiante da casa de Quaresma e a estrada de ferro tinha uma estação lá. Ricardo dispensou a estrada e foi a pé, pela estrada de rodagem, se assim se pode chamar um trilho, cheio de caldeirões, que subia e descia morros, cortava planícies e rios em toscas pontes. A vila!... Tinha duas ruas principais: a antiga, determinada pelo velho caminho de tropas, e a nova, cuja origem veio da ligação da velha com a estrada de ferro. Elas se encontravam em T, sendo o braço vertical o caminho da estação. As outras partiam delas, as casas juntavam-se urbanamente no começo, depois iam espaçando, espaçando, até acabar em mato, em campo. A antiga chamava-se Marechal Deodoro, ex-Imperador; e a nova, Marechal Floriano, ex-Imperatriz. De uma das extremidades da Rua Marechal Deodoro, partia a da Matriz, que ia ter à igreja, ao alto de uma colina, feia e pobre no seu estilo jesuítico. À esquerda da estação, num campo, a Praça da República, a que ia dar uma rua mal esboçada por espaçadas casas, ficava a Câmara Municipal.

Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915)Onde histórias criam vida. Descubra agora