I - NO "SOSSEGO"

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Não era feio o lugar, mas não era belo. Tinha, entretanto, o aspecto tranqüilo e satisfeito de quem se julga bem com a sua sorte.

A casa erguia-se sobre um socalco, uma espécie de degrau, formando a subida para a maior altura de uma pequena colina que lhe corria nos fundos. Em frente, por entre os bambus da cerca, olhava uma planície a morrer nas montanhas que se viam ao longe; um regato de águas paradas e sujas cortava-a paralelamente à testada da casa; mais adiante, o trem passava vincando a planície com a fita clara de sua linha capinada; um carreiro, com casas, de um e de outro lado, saia da esquerda e ia ter à estação, atravessando o regato e serpeando pelo plano. A habitação de Quaresma tinha assim um amplo horizonte, olhando para o levante, a "noruega", e era também risonha e graciosa nos seus muros caiados. Edificada com a desoladora indigência arquitetônica das nossas casas de campo, possuía, porém, vastas salas, amplos quartos, todos com janelas, e uma varanda com uma colunata heterodoxa. Além desta principal, o sítio do "Sossego", como se chamava, tinha outras construções: a velha casa da farinha, que ainda tinha o forno intacto e a roda desmontada, e uma estrebaria coberta de sapê.

Não havia três meses que viera habitar aquela casa, naquele ermo lugar, a duas horas do Rio, por estrada de ferro, após ter passado seis meses no hospício da Praia das Saudades. Saíra curado? Quem sabe lá? Parecia; não delirava e os seus gestos e propósitos eram de homem comum embora, sob tal aparência, se pudesse sempre crer que não se lhe despedira de todo, já não se dirá a loucura, mas o sonho que cevara durante tantos anos. Foram mais seis meses de repouso e útil seqüestração que mesmo de uso de uma terapêutica psiquiátrica.

Quaresma viveu lá, no manicômio, resignadamente, conversando com os seus companheiros, onde via ricos que se diziam pobres, pobres que se queriam ricos, sábios a maldizer da sabedoria, ignorantes a se proclamarem sábios: mas deles todos, daquele que mais se admirou, foi de um velho e plácido negociante da Rua dos Pescadores que se supunha Átila. Eu, dizia o pacato velho, sou Átila, sabe? Sou Átila. Tinha fracas notícias da personagem, sabia o nome e nada mais, Sou Átila, matei muita gente — e era só.

Saiu o major mais triste ainda do que vivera toda a vida. De todas as coisas tristes de ver, no mundo, a mais triste é a loucura; é a mais depressora e pungente.

Aquela continuação da nossa vida tal e qual, com um desarranjo imperceptível, mas profundo e quase sempre insondável, que a inutiliza inteiramente, faz pensar em alguma coisa mais forte que nós, que nos guia, que nos impele e em cujas mãos somos simples joguetes. Em vários tempos e lugares, a loucura foi considerada sagrada, e deve haver razão nisso no sentimento que se apodera de nós quando, ao vermos um louco desarrazoar, pensamos logo que já não é ele quem fala, é alguém, é alguém que vê por ele, interpreta as coisas por ele, está atrás dele, invisível!...

Quaresma saiu envolvido, penetrado da tristeza do manicômio. Voltou à sua casa, mas a vista das suas coisas familiares não lhe tirou a forte impressão de que vinha impregnado. Embora nunca tivesse sido alegre, a sua fisionomia apresentava mais desgosto que antes, muito abatimento moral, e foi para levantar o ânimo que se recolheu àquela risonha casa de roça, onde se dedicava a modestas culturas.

Não fora ele, porém, quem se lembrara; fora a afilhada que lhe trouxe à idéia aquele doce acabar para a sua vida. Vendo-o naquele estado de abatimento, triste e taciturno, sem coragem de sair, enclausurado em sua casa de São Cristóvão, Olga dirigiu-se um dia ao padrinho meiga e filialmente:

— O padrinho por que não compra um sítio? Seria tão bom fazer as suas culturas, ter o seu pomar, a sua horta... não acha?

Tão taciturno que ele estivesse, não pôde deixar de modificar imediatamente a sua fisionomia à lembrança da moça. Era um velho desejo seu, esse de tirar da terra o alimento, a alegria e a fortuna; e foi lembrando dos seus antigos projetos que respondeu à afilhada:

Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915)Onde histórias criam vida. Descubra agora