Havia mais de uma hora que ele estava ali, num grande salão do palácio, vendo o marechal, mas sem lhe poder falar. Quase não se encontravam dificuldades para se chegar à sua presença, mas falar-lhe, a coisa não era tão fácil.
O palácio tinha um ar de intimidade, de quase relaxamento, representativo e eloqüente. Não era raro ver-se pelos divãs, em outras salas, ajudantes-de-ordens, ordenanças, contínuos, cochilando, meio deitados e desabotoados. Tudo nele era desleixo e moleza. Os cantos dos tetos tinham teias de aranha; dos tapetes, quando pisados com mais força, subia uma poeira de rua mal varrida.
Quaresma não pudera vir logo, como anunciara no telegrama. Fora preciso pôr em ordem os seus negócios, arranjar quem fizesse companhia à irmã. Fizera Dona Adelaide mil objeções à sua partida; mostrara-lhe os riscos da luta, da guerra, incompatíveis com a sua idade e superiores à sua força; ele, porém, não se deixara abater, fizera pé firme, pois sentia, indispensável, necessário que toda a sua vontade, que toda a sua inteligência, que tudo o que ele tinha de vida e atividade fosse posto à disposição do governo, para então!... oh!
Aproveitara os dias até para redigir um memorial que ia entregar a Floriano. Nele expunham-se as medidas necessárias para o levantamento da agricultura e mostravam-se todos os entraves, oriundos da grande propriedade, das exações fiscais, da carestia de fretes, da estreiteza dos mercados e das violências políticas.
O major apertava o manuscrito na mão e lembrava-se da sua casa, lá longe, no canto daquela planície feia, olhando, no poente, as montanhas que se alongavam, se afilavam nos dias claros e transparentes; lembrava-se de sua irmã, dos seus olhos verdes e plácidos que o viram partir com uma impassibilidade que não era natural; mas do que se lembrava mais, naquele momento, era do Anastácio, o seu preto velho, o seu longo olhar, não mais com aquela ternura passiva de animal doméstico, mas cheio de assombro, de espanto e piedade, rolando muito nas órbitas as escleróticas muito brancas, quando o viu penetrar no vagão da estrada de ferro, Parecia que farejava desgraça... Não lhe era comum tal atitude e como que a tomava por ter descoberto nas coisas sinais de dolorosos acontecimentos a vir... Ora!...
Ficara Quaresma a um canto vendo entrar um e outro, à espera que o presidente o chamasse. Era cedo, pouco devia faltar para o meio-dia, e Floriano tinha ainda, como sinal do almoço, o palito na boca.
Falou em primeiro lugar a uma comissão de senhoras que vinham oferecer o seu braço e o seu sangue em defesa das instituições e da pátria. A oradora era uma mulher baixa, de busto curto, gorda, com grandes seios altos e falava agitando o leque fechado na mão direita.
Não se podia dizer bem qual a sua cor, sua raça, ao menos: andavam tantas nela que uma escondia a outra, furtando toda ela a uma classificação honesta.
Enquanto falava, a mulherzinha deitava sobre o marechal os grandes olhos que despediam chispas. Floriano parecia incomodado com aquele chamejar; era como se temesse derreter-se ao calor daquele olhar que queimava mais sedução que patriotismo, Fingia encará-la, abaixava o rosto como um adolescente, batia com os dedos na mesa...
Quando lhe chegou a vez de falar, levantou um pouco o rosto, mas sem encarar a mulher, e, com um grosso e difícil sorriso de roceiro, declinou da oferta, visto a República ainda dispor de bastante força para vencer.
A última frase, ele a disse com mais vagar e quase ironicamente. As damas despediram-se; o marechal girou olhar em torno do salão e deu com Quaresma.
— Então, Quaresma? fez ele familiarmente.
O major ia aproximar-se, mas logo estacou no lugar em que estava. Uma chusma de oficiais subalternos e cadetes cercou o ditador e a sua atenção convergiu para eles. Não se ouvia o que diziam. Falavam ao ouvido de Floriano, cochichavam, batiam-lhe nas espáduas. O marechal quase não falava: movia com a cabeça ou pronunciava um monossílabo, coisa que Quaresma percebia pela articulação dos lábios.