| prólogo

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   Calcei meu scarpin de camurça vermelha e separei uns trocados para o café da tarde porque sabia que o dia de trabalho seria longo.
   Desci as escadas apressadamente e logo encontrei o táxi a minha espera no meio-fio. Entrando no veículo, senti uma brisa quente e infernal que poderia causar uma insolação a qualquer um que ficasse ali por muito tempo, certeza.

   A hora do rush era a pior para se deslocar em qualquer lugar da grande Manhattan, que se inundava de pessoas indo e vindo todos os dias para lugares distintos, mas todas tinham a mesma missão de conseguir chegar ao seus destinos sãs e salvas do interminável trânsito do centro da Park Avenue, uma tarefa nada fácil, na verdade.
   Surpreendemente cheguei atrasada de novo no escritório. Abri o enorme portão cinza da recepção do escritório e dei um vívido "bom dia" para Andrew, o jovem e belo recepcionista que sempre me tratara como uma amiga de anos, mesmo que eu fosse apenas mais uma colega.

— Apressada como sempre, não é mesmo, Kaya?

— Sim, não consigo evitar. — Dei um sorriso de lado, aprovando sua afirmação.

— E então, sabe o que vai fazer neste fim de semana?

— Realmente não sei, provavelmente estudar para a prova da faculdade. — Disse eu, com pequenos arrepios em volta de meu braço só em ouvir "faculdade". Já era o meu segundo curso e ainda sim não sabia como lidar com todo o estresse da pressão de ser uma universitária.
   Já havia pensado várias e várias vezes em trancar Direito, mas como Hayley, minha irmã mais velha diz "eu preciso arrumar um rumo na vida", como se todo o meu esforço para me formar em Contabilidade tivesse o mesmo peso de uma pena. Desejava com o todo o meu ser jogar tudo para o alto, me demitir do Escritório Saint Tivèrie e viver apenas de minha coleção de colares artesanais, Mesmo que isso diminuísse minha qualidade de vida.

  

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Às duas horas da tarde do dia seguinte, logo depois do horário de almoço, fui chamada a sala de Alex e já estava preparada para arrumar minhas coisas, encaixotá-las e fingir choro na frente dos outros colegas, mas não, chegando lá fui surpreendida com a responsável pelo setor de recursos humanos me engolindo com o olhar de que eu deveria me sentar na cadeira e ouvir o que ela tinha a dizer.

— Senhorita Crissman, tem ideia do porquê está aqui? — disse ela, ainda me fitando e deixando o ambiente ainda mais assustador.

— Não faço a mínima ideia, senhora.

— Pois bem, não se preocupe, é uma ótima notícia. Os supervisores e eu andamos vendo sua evolução e esforço aqui, você é a que mais se destaca.

   Enquanto ela falava, o meu temor diminuía mas a tensão continuava a mesma, me deixando ansiosa sobre o que ela diria.

— No nome de todo o Setor de Recursos Humanos, eu te parabenizo pela recente promoção a Chefe de Contabilidade de nossa empresa. Não nos decepcione, Crissman.

   Saindo da sala, contei a novidade a todos e vi felicidade e entusiasmo nos olhos de uns, frieza nos olhos de outros, mas não me importava, depois de dias na monotonia desgastante finalmente fui recompensada como deveria. Rebeca, Tyler, Jonas e Marianne me convidaram para participar da noite de bebedeira deles que sempre acontecia todos as sextas depois do trabalho, foi um gesto significativo para mim, já que considerava o ambiente em que trabalhava todos os dias hostil e inóspito, como se todos me quisessem fora dali.


   Eram quase dez horas da noite e tínhamos acabado de chegar ao bar, era espaçoso, com paredes revestidas em madeira pura, bastante amarronzada e com a concentração de cor de uma verdadeira árvore seringueira, parecia ser bem cara. Os balcões eram feitos com mármore cinzentado, com pequenos detalhes em vermelho púrpura, nunca havia visto algo tão trabalhado.
   Não sou acostumada a beber mas Jonas me ofereceu dois martínis de maçã e eu não pude refutar, parecia delicioso então eu dei o primeiro gole e daí não lembro mais quando parei. Dois, três, quatro...Perdi a conta de quantos martínis havia bebido, quarenta minutos depois do primeiro gole eu comecei a aumentar o timbre de voz, gritar desnecessariamente e andar um pouco torto - até demais - para o meu gosto.

   Ainda com as pernas trêmulas, subi ao terraço para ver a tal "vista impressionante" de que os baristas haviam se gabado e tive a confirmação de que era tudo o que tinham dito e um pouco mais. O céu estava preenchido com uma mistura de azul acinzentado e repleto de estrelas pequenas que o fazia parecer em uma melindrosa pintura de Michelângelo. A sacada feita de uma espécie de vidro resistente reforçava a ideia de que toda aquela paisagem não passava de uma mera obra de arte feita em óleo sobre tela.

   Comecei a sentir que as tonturas estavam aumentando e que eu não conseguiria ficar em pé, então me esforcei para alcançar a enorme escada que ligava o andar de baixo com a sacada. De repente, com um passo em falso, notei meus calcanhares escorregando entre as dobras dos degraus e depois apaguei.

  Minhas pálpebras abriram e apenas enxerguei um feixe de luz. Olhei à minha volta e vi que ainda era de noite, mas eu não estava mais no bar. Acordei jogada em um beco de algum lugar desconhecido sem a menor ideia de como cheguei lá, não sabia se havia sido atacada ou se alguém me viu enchendo a cara e me trouxe para cá.
   E então segui o conselho que Hay-Hay sempre me dara, quando eu não soubesse onde estou, o melhor é explorar e tentar pedir ajuda.
   Caminhei por cerca de vinte minutos e no caminho vi casas simples de condomínios pequenos recém construídos e extremamente limpos e em ordem. Finalmente achei uma farmácia de bairro e logo entrei na esperança de ter algumas respostas. Fui direto ao balcão de farmacologia e tentei ser o máximo breve e educada possível.

— Oi, boa noite, desculpa incomodar mas o senhor pode me dizer exatamente que lugar é este? É que eu estou meio perdida...

— Estamos no bairro Lower East Side¹, a senhorita é uma turista?

— Não, não sou. É um alívio saber que estou perto de casa, moro em Manhattan desde que nasci mas nunca tive a oportunidade de visitar a East Side. — disse eu, tentando explicar o motivo de minha confusão, antes que o farmacêutico me achasse uma lunática.

— Perdão, senhorita, mas nunca em meus cinquenta e sete anos de vida já ouvi falar sobre esta tal Manhattan, de onde você veio de verdade?

— Não estou lhe compreendendo, moço. Manhattan é a cidade mais conhecida de Nova York, como você não a conhece? — pergunto apreensiva com a resposta do senhor de cabelos grisalhos.
— Sendo sincero, também não sei onde fica Nova York, nunca havia ouvido falar sobre.

   E então me desespero, fitando os outros balconistas que estavam atendendo dois clientes e ainda sim me olhavam com o olhar de quem não estava entendendo do que eu estava falando, como se Nova York, como se a Park Avenue, avenida onde se encontrava meu apartamento e meu trabalho, nunca existissem. Como se nada que eu lembrava era uma memória verdadeira para aqueles balconistas. Olhei novamente e vi tudo girar em câmera lenta, anunciando oficialmente que eu estava perdida pela primeira vez sem nenhum vestígio de como fui parar ali e sem nenhuma expectativa de que iria voltar.

[1] É um bairro localizado na parte sudeste de Nova York, em Manhattan, a alguns quilômetros do apartamento de Kaya.

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                           poυr eɴ ѕαvòιr

| notas da autora

Olá querido leitor, o prólogo ficou um pouco extenso, não é mesmo? A intenção era que vocês conhecessem o máximo sobre a vida da Kaya e que a narrativa predominasse, sem muitos diálogos, porém a partir de outros capítulos essa realidade vai mudar.
Atenção! Essa história é para leitores paranóicos que adoram teorias e devaneios à madrugada. Caso você seja um deles, mergulhe nesta história.

— au revoir.

Trancada a Nove ChavesOnde histórias criam vida. Descubra agora