Mesmo sem sono, acabei dormindo encolhida na varanda. Ainda voltei, nervosa, mais uma vez ao quarto para pegar ao menos uns cobertores da cama, já que Siever não usava nenhum. O frio agora não era tão intenso e mortal como era no começo, mas era persistente. Era uma coisa com a qual eu deveria me acostumar.
Eu acordei com os sussurros que vinham da entrada da varanda. Um casal com uniformes pretos estava ali parado, me observando. Eu acabei me levantando rápido, nervosa.
— Ah... oi?
O casal pareceu confuso. Eu vim a entender o porquê quando lembrei-me que utilizava o ponto do tradutor universal para conversar com Henry, mas eles provavelmente não tinham um receptor para esse equipamento, e nem eu andava com um tradutor simultâneo. Eu conseguia entender o que eles diziam, mas eles não entenderiam nada do que eu falasse.
Comecei a ficar mais nervosa ainda. Eu ainda me lembrava com calafrios da última "recepção" que tive ao encontrar pessoas de Keret que não me compreendiam, mas para meu alívio Henry apareceu logo depois, sonolento e amassado.
— Que está havendo com essa reunião em minha varanda? — Ele perguntou distraído, esfregando o rosto.
Os dois pareceram tão surpresos de ver Henry quanto estavam por me ver. Eles desculparam-se pela indelicadeza de terem sido vistos, não queriam ter interrompido nada, e que já haviam abastecido e preparado a casa como Henry havia instruído. O que me surpreendeu mais ainda foi a expressão de horror e decepção nos rostos do casal.
— Que foi? — Henry perguntou depois de reparar na minha expressão quando os dois saíram.
— Por que eles estavam assustados com você? — perguntei, sentindo minha própria surpresa.
— Hum... eles? Eles não estavam com medo. Aqui em Keret, é costume que os trabalhadores sejam invisíveis durante o trabalho. Principalmente para os funcionários domésticos. É um cargo de muita honra e confiança, então quanto mais invisível for esse funcionário, melhor ele é considerado. — Ele virou o olhar por cima do ombro, observando o caminho por onde eles tinham saído — Faz uns bons anos que não os via pessoalmente... devem ter ficado constrangidos.
— Isso não é muito impessoal e cruel? — eu perguntei. Tratar alguém como invisível no meu planeta era com certeza considerado algo cruel.
Henry por um momento pareceu não entender a pergunta, mas respondeu logo depois:
— Na verdade, seria se o trabalho deles não fosse apreciado e eu não os considerasse como pessoas. Que eu saiba, ninguém gosta realmente de ser visto trabalhando, não importa a área. É uma coisa muito íntima... desde que os resultados sejam alcançados de forma digna, não tem por que ser visível. Nesse planeta as coisas são tratadas como estando em polos diferentes. O eu profissional é diferente do eu pessoal, e os dois devem ser avaliados e percebidos de formas diferentes... As pessoas não são o trabalho que fazem, mas sim o que fazem fora desse trabalho — ele explicou, mas então parou surpreso ao me olhar diretamente pela primeira vez, — Alésia, que é isso que está usando? É uma camisa minha? — Ele sorriu abertamente e realmente parecia estar se divertindo com isso.
— Algum problema? Não tinha outra coisa para usar... — me expliquei constrangida, me olhando naquele camisão.
— Problema algum... até que ficou bom em você — ele disse com cortesia, — Então, vamos sair?
Eu me surpreendi com o convite.
— Sair? Sair para onde? Quer dizer, não que eu esteja reclamando — falei animada.
— Não sei, sair e deixar o senhor e a senhora Sruar trabalhar em paz, ou eles vão me dar uma bronca. Podemos ir ver a cidade, comprar algumas roupas novas, comer comida de verdade... esse tipo de coisa.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Deuses caídos da Criação - DCC
Science FictionEm um futuro milhões de anos a frente, a magia e a tecnologia já coexistiam. Os humanos expandiram-se por milhares de planetas. Várias raças híbridas evoluíram e as relações dentro do Conglomerado Imperial finalmente tinham ficado estáveis depois da...