Origem

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Se você está lendo essa história, é porque eu já morri.

Calma, calma... Não arregale os olhos tão depressa nem entreabra os lábios expressando surpresa ou confusão por eu contar o desfecho da trama logo no início, perdendo o suposto sentido que te manteria ainda lendo.
Eu não quero causar comoção, tão pouco fomentar qualquer curiosidade que desponte das suas entranhas afim de desvendar como eu cheguei nesse fim dramático e pitoresco em seu decurso. Quero apenas permitir que saibam como a minha vida foi, até seu ponto final.

Poderia começar contando desde os primórdios, quando eu era uma criança saudável e sorridente, cercada de amigos e que vivia num âmbito familiar perfeito, que adorava desenhar com multicores cada nova descoberta do universo tão diversificado e interessante no qual eu me aventuraria incansavelmente... mas eu já iniciaria essa narrativa mentindo.
Foi o extremo oposto disso.
Minha mãe morreu tragicamente em um acidente de carro quando eu tinha 7 anos. Trágico porque ela não foi a única quem perdeu a vida no estrago que ela mesma causou quando resolveu dar fim aos seus problemas dirigindo em alta velocidade embebida no álcool até a cabeça numa rua de grande tráfego. Ela levou um casal de recém casados para o mesmo destino — te surpreenderia saber que eles haviam acabado de sair da Igreja em um daqueles carros decorados com corações e latinhas de alumínio que se atritavam descompassadamente no asfalto causando aquele peculiar ruído estridente? Pois foi exatamente o que aconteceu. Só acho uma pena que não houvesse nenhuma consciência viva pra sentir a culpa de ter ceifado duas vidas de uma história que estava apenas começando... —.
Meu pai não conseguia manter a casa enquanto ela ainda era viva, depois disso então as coisas pioraram gradativamente. O impacto da falta de dinheiro não demorou muito pra nos assolar. Primeiro foram os móveis com menos de 3 meses de uso da cozinha, depois da sala e quartos. No fim, restaram apenas os colchões, o sofá velho de dois lugares, a televisão e as louças do banheiro. E o silêncio, é claro.
Inicialmente eu achei que o motivo para o que antes era um apartamento bem decorado ter se transformado num espaço frio e empoeirado, eram as dividas de aluguel e contas que se acumulavam. Fiquei por quase oito anos acreditando que eu era a maior despesa que meu pai tinha, então assim que entrei na adolescência arranjei um emprego pra ajudar em casa. Aos poucos, conforme a maturidade me atingia dia após dia naquele mercadinho de bairro aonde eu servia como estoquista, foi que, pela mais absoluta intervenção do destino, descobri a verdade que era encoberta por uma camada quase transparente de inocência, a qual eu não fui capaz de enxergar antes.
Na realidade, se analisarmos de uma forma mais ampla todo o conceito de verdade, mentira e omissão, vamos descobrir que nenhuma pode ser tão eficaz em nos destruir por dentro e que a nossa inclinação em se vitimizar e agorar na dor propositalmente criada para nos consolar, é o que de fato aperta o gatilho. Nós tendemos à exagerar as reações negativas de tudo o que corrompe o nosso ideal primário. Ou seja, nós basicamente sofremos porque nos convencemos de que a dor é a cura das nossas frustações.
Quem nunca achou que superaria algo sem esforço algum por achar que tem autocontrole suficiente pra passar por cima de um obstáculo ou dificuldade, mas, em pouco tempo, percebe que o desgosto e principalmente o incômodo que o descarrilamento do que fora planejado causa, te faz sucumbir de tal forma que parece impossível conviver com a ideia de que seus planos falharam e que o vazio do desaponto irá te torturar até a decepção seguinte?
Todos nós já tivemos essa falsa confiança.
No meu caso, eu me enganei ao mesmo tempo que fui enganado.
Achar normal meu pai vender todos os móveis da casa sem dar qualquer explicação sobre, vê-lo passar dias fora sem sequer avisar pra onde ia e quando voltaria, comer por uma semana inteira as sobras do que foi poupado pra que eu não me adoentasse pois eu ainda precisava ir regularmente às aulas, afinal eu deveria ser um bom filho — ao menos.
Todos os pequenos detalhes que foram ignorados ao longo de um crescimento torto e desenvolvimento pessoal conturbado me afligiram em um único disparo.

Não adiantaria eu rezar, nem chorar, muito menos desistir de tudo o que eu achava que pretendia poder e ter.
Eu precisava encarar o fato de que eu tinha o pior exemplo de fraqueza e entregação dentro do que deveria chamar de lar.

Meu pai estava mais dependente das drogas do que eu afogado na merda da minha vida.

Interlúdio | JaeyongOnde histórias criam vida. Descubra agora