Uno

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Cada indivíduo é responsável pelas ações e condições que o conduz à finalmente descansar no esquecimento da sua própria existência ou podemos responsabilizar o destino por isso?
Afinal não é ele a figura popular entre as menções de amor, felicidade e até morte?
Quando reencontramos alguém após muito tempo tendemos à dizer que aquilo estava destinado, nos eximindo indiretamente de qualquer relação com o acontecimento - principalmente se acaso algum trauma decorra disso -. Mas será que ele existe realmente?
Por que excluímos a possibilidade em tudo ser apenas coincidência ou banalidade? Nem tudo precisa ter significado nas nossas vidas, não é mesmo? Eu iria odiar se cada pequeno deslize sem intenção meu tivesse um reflexo tão expressivo a curto ou longo prazo...
Minha falsa liberdade de ação e autonomia se reduziria ao receio constante de cair na minha própria armadilha e isso indubitavelmente me forçaria à viver dentro do limite e, definitivamente, eu não o faria.
Mas apesar de não acreditar muito nessa besteira toda de desígnio, eu sinceramente achava que Jaehyun estava prometido à mim da mesma forma que eu fora designado à ele. Percorremos caminhos distintos até por enfim nos encontrarmos no que parecia já ser planejado por algo maior do que tudo o que a ciência ainda tenta explicar.
Destino ou não, era pra ele fazer parte dessa estória.

"- Você vai mesmo deixar seu emprego?" - perguntou vestindo o agasalho surrado ao sairmos do seu apartamento. "Aquilo vai ficar estranho sem você, cara." - me olhou com profundidade esperando que eu declinasse, provavelmente.
"- Eu já fiquei tempo demais naquele lugar. Preciso de algo diferente."
"- Algo, ou pessoas diferentes?" - desceu ligeiro as escadas do prédio antigo enquanto desembrulhava uma goma de mascar que havia sido esquecida no bolso da jaqueta há muito tempo, se afastando consideravelmente de mim.
"- Desde quando eu preciso de pessoas novas na minha vida, Yuta?" - o encarei por trás denotando irritação. "Não seja ridículo." - franzi o cenho colocando o cigarro recém aceso entre os lábios tragando-o com pressa afim de cessar o assunto.

Yuta tinha crises de ciúmes que não correspondiam a sua idade - ao menos não a cronológica -. O hábito repetitivo de acrescentar malícia aonde não havia e sondar por entrelinhas cada passo que eu dava fora do seu alcance visual o tornava alguém extremamente cansativo as vezes. Isso somado a minha falta de paciência resultava em discussões desnecessárias e muitas vezes em brigas com marcas permanentes e o gosto agre de sangue.
Era uma relação típica de amor e ódio.

"- Você nunca se contentará apenas comigo, então em algum momento você vai buscar ocupar mais do espaço vazio dentro de si. Não negue isso." - o semblante convicto da verdade em suas palavras caía sobre mim a medida que andávamos até a entrada do local de arquitetura rústica.
"- Você fala como se eu fosse te substituir facilmente... Isso soa bem cruel, Yuta." - logo fiquei em silêncio, não em consentimento, mas porquê eu não tinha uma desculpa decorada naquele momento.

Percorremos o trajeto de cinco quadras até próximo da cafeteria onde costumávamos fazer a primeira refeição do dia quando eu resolvia posar em seu apartamento sem dizer uma única palavra.
Não era preciso constituir uma frase desconexa pra preencher o mistério sobre o que cada um estava pensando durante aqueles 6 ou 7 minutos de caminhada.
O silêncio sozinho já era capaz de nos magoar intimamente pela falta de consideração nas pequenas atitudes, não precisávamos nos esforçar muito além disso pra causar outra rachadura em nosso relacionamento.

"- Eu vou comprar cigarros. Vai na frente, eu te encontro lá." - avisei andando de costas observando a figura amoada seguir em frente sem voltar o olhar. "Pegue a mesa do canto, não a da janela! Entendeu?!" - gritei à distância pra que ele ouvisse meu pedido, mas só recebi um gesto obsceno como resposta - sim, um 'dedo do meio' -.

Retornei metade da quadra afim de ir até a loja de conveniências da esquina. O cigarro de lá era absurdamente caro, mas um costume quando se torna vício simplesmente não tem preço. Ou você paga com o seu dinheiro ou com a vida, fácil assim.
Passei pela porta de vidro azulado indo direto à sessão de bebidas onde também estavam os cigarros dos mais variados tipos, tamanhos, marcas e preços - o mais barato seria o meu preferido sempre -. Andei até o único caixa do lugar enquanto vasculhava os bolsos na procura de moedas para o troco quando notei um pequeno cartaz que anunciava a promoção dos bolinhos favoritos do Yuta. Aquilo não seria um pedido de desculpas, claro, mas abrandaria qualquer ressentimento que ficara da breve discussão matinal.
Uma pequena fila rapidamente havia se formado para o atendimento no caixa então decidi dar algumas voltas entre os corredores estreitos da lojinha até que ela diminuísse ou se desfizesse.
Enquanto lia a tabela nutricional de um pacote de biscoitos pra evitar consumir qualquer coisa com glúten, já que eu era alérgico, tive a nítida e desconfortável sensação de estar sendo observado por alguém logo atrás de mim. Inicialmente eu ignorei pois poderia ser apenas impressão, mas aquilo parecia queimar minha nuca como brasa - nessas situações ou você encara, ou disfarça indo para o lado oposto, certo? Certo. -.
Virei meu corpo lentamente num ângulo de 180° lutando contra a vergonha e principalmente receio em ser algum funcionário do lugar me flagrando furtar o tal pacote de biscoitos sem glúten - eu não tinha dinheiro suficiente para os dois e não deixaria de comprar os bolinhos do Yuta, então -.

"- Taeyong?" - a voz grossa invadiu meus ouvidos fazendo minhas pernas perderem o vigor. "Hey, cara!" - uma mão firme apertou meu ombro direito me congelando na mesma posição, não porquê eu achei que havia sido pego no ato criminoso, mas porquê eu reconheci aquela voz.

Era Jaehyun com o mesmo sorriso doce de quando eu o conheci.
Seus cabelos escuros desarrumados sobre o rosto combinavam com seu tom de pele clara que cintilava ao menor reflexo de luz, cada traço do seu rosto parecia ter sido desenhado por mãos habilidosas pois eram perfeitos no sentido mais significativo da palavra.
Ele estava tão próximo de mim que eu pude sentir sua respiração serena e seu hálito de cigarro levemente canelado penetrar minhas narinas entorpecendo todo o meu organismo.
Sua presença era tão marcante e intensa que era impossível não se sentir intimidado em ter aqueles olhos negros te olhando fixamente.
Eu fiquei imóvel, exatamente como da primeira vez que o vi.

"— O-oi." - me limitei em gaguejar o cumprimento.
"— Eu quase não te reconheci de touca, desculpe ficar encarando assim..." - ele abaixou o olhar curvando timidamente os lábios. "Você cortou os cabelos também, né?" - levou uma das mãos sobre a franja que cobria meus olhos arregalados afastando uma das mechas enquanto sorria da forma mais cândida e destruidora que se possa imaginar.

Provavelmente você não deve conhecer com intimidade a sensação corrosiva de frustração em saber que todo e qualquer projeto de ideal de vida planejado com minúcia por tanto tempo acabaria sendo extirpado dos seus planos por alguém que sequer desconfiava o tamanho da influência que tinha sobre si.
Foi o que eu senti naquela fração de segundo eterna: o gosto de derrota saturando cada ponto sensível do meu corpo.

O mais interessante da minha estória não são as vertentes discutíveis sobre meus relacionamentos ou sobre a linha irrisória de moralidade que, admito, eu não tive, mas sim o fato imanente em o protagonista dela não ser esse que narra, mas sim ele.

Interlúdio | JaeyongOnde histórias criam vida. Descubra agora