Paralelos

64 8 0
                                    

Eu não me lembro qual foi a última vez que eu realmente senti amor sem ser inerente a dor.
Tudo parecia muito artificial na minha infância como se eu fosse o protagonista de uma peça dramática de teatro sobre os lapsos do convívio familiar, então nada aparentava ser real ou sólido naquela época apesar de ser exatamente nesse período que se constituem e afirmam os laços afetivos.
Sempre foi difícil pra mim demonstrar qualquer sentimento. Havia um bloqueio ou autopreservação que me impedia de falar e agir da forma que eu sabia que necessitava, afinal as vezes nós precisamos esquecer a afabilidade e empatia pra revelar a verdade que nos alicia.
A honestidade tem tantas faces quanto a mentira.
Eu definitivamente não sabia como inicar a conversa que significaria o término da relação perturbada entre mim e Yuta. Ser o responsável pela mágoa que obviamente remoeria dentro dele não me deixava confortável, claro. Eu podia não o amar como alguém por quem eu arriscaria minha insignificante vida ou com quem eu desejaria passar os dias que ainda me restavam, mas eu estava muito longe de odiá-lo ao ponto de causar seu sofrimento intencionalmente.
Mas causei.
A ausência de coragem nas minhas contínuas ações originou o mais sórdido e imperdoável dos sentimentos: a traição.
Como se não bastasse eu usar seu complexo de inferioridade pra mitigar todo o meu anseio em sentir a verdadeira essência em ser desejado, eu fui capaz de traí-lo com alguém da sua mais absoluta confiança. Foi como uma desprezível traição em dupla, onde meu parceiro e cúmplice era tão culpado e atuante quanto eu.
Ninguém era o mentor desse crime. Ambos puxamos o gatilho.

"- Você podia parar de fumar essa merda, Taeyong... Ao menos quando está comigo." - a voz melancólica rompeu o silêncio.
"- Vou parar de fumar quando você parar de injetar aquela porcaria no seu corpo." - Yuta sorriu de lado como se soubesse que se realmente uma coisa dependesse da outra, ambas nunca aconteceriam.
"- Ultimamente você está mais distante, digo, mais que o normal. Aconteceu alguma coisa? Eu te ligo todas as noites e você quase sempre me ignora... Não era assim antes." - ele repousou sua cabeça sobre a minha barriga enquanto observava o teto que parecia cair lentamente sobre nós dois devido a contração do que não era dito.
Havia uma omissão mútua entre eu e ele.
A relatividade da situação era sublime. Eu sabia que ele estava tentando desvendar o real motivo do meu recente afastamento e ele sabia que eu mantinha as palavras dentro da boca porque dizê-las, enfim, seria o fim daquilo que nos fazia estar juntos naquele quarto escuro, completamente nus sobre o colchão mofado e cheirando a promiscuidade.
Estávamos enganando um ao outro.
"- Nada nunca acontece, Yuta. Você sabe da minha vida tanto quanto eu."
"- Taeil me disse que te viu com o Jaehyun há dois dias..." - ergueu-se calmamente virando em minha direção. "Nada aconteceu mesmo?" - tirou o cigarro pela metade da minha boca tragando-o sem muito jeito.
Meus olhos vacilaram naquele instante.
A sensação de ter sido descoberto transpassou todo o meu corpo me fazendo travar. Nada que eu pudesse dizer poderia servir como argumento pra atitude perversa que eu vinha desempenhando.
Eu era condescendente da minha culpa e sabia que quanto mais tempo decorresse maior seria minha punição e mais repreensível seria o pecado.
"- Taeil é um drogado filho da puta. Provavelmente ele estava chapado e imaginou tudo." - meu nervosismo era tão nítido quanto o temor que cintilava em meus olhos. "Ou você já esqueceu tudo o que ele fez?"
"- Não, claro que não..."
"- Então pare de ouvir o que ele diz como se ele fosse confiável." - peguei o cigarro que balançava entre seus lábios rosados apagando a brasa que ainda queimava na pele do seu antebraço o encarando com severidade enquanto ele me empurrava contra a parede na reação automática do seu corpo em sentir o couro crestar.
"- Por que fez isso?!" - envolveu meu pescoço cheio de marcas que ele mesmo havia deixado com as duas mãos. "Por que você sempre faz isso, Taeyong?!"
Yuta odiava quando eu o tratava com insignificância. Como se ele fosse um pedaço de carne morta rejeitada até pelos abutres.
Seus olhos ficavam vermelhos como a chama do inferno que ele involuntariamente vivia por estar comigo. Uma força inusual sortia de cada músculo do seu corpo fazendo a figura quase sempre amável desaparecer na avidez de seus punhos.
"- Porque eu sei que você não sente." - coloquei minhas mãos sobre as dele apertando-as ainda mais contra o meu pescoço. "Você já não é mais capaz de ter sensibilidade porque aquela droga que você injeta todos os dias deve ter reduzido seu sangue à pó!"
"- Mas que tipo de moral você acha que tem pra falar sobre o que eu faço? Hm?! Você fuma três carteiras se cigarro por dia como um condenado apressando a própria morte e vem falar da única coisa que eu faço além de correr como um imbecil atrás de você? Hein, Taeyong?!" - ele secudia meu corpo como se fosse arrancar uma reação a força. Faíscas eram cuspidas da sua boca intensificando o desequilíbrio em ter sido tocado bem na ferida.
"- Então pare de correr atrás de mim e seja suficiente o bastante pra me atrair!" - no auge da insanidade que aflorava minha pele, me joguei sobre ele levando com toda a força sua cabeça contra o piso gelado.
Eu jamais faria aquilo se eu não me sentisse extremamente ameaçado em ser pego na própria corrupção. Nunca teria a intrepidez de levantar as mãos à ele que sempre usou as suas para me acarinhar desde os momentos mais íntimos aos mais difíceis.
Sem que eu ao menos percebesse, me tornei o algoz de outra vida. O lado negro e obsceno que abraçava suas vítimas fingindo afago enquanto as conduzia à beira do abismo.
"- Por que você gosta tanto de me machucar...?" - sua voz saiu fraca, quase inaudível. Lágrimas começavam a verter dos olhos mórbidos que me fitavam pedindo desesperadamente por compaixão. Ele só queria que eu o entendesse e o aceitasse, mas eu era incapaz, insuficiente, sujo e ridiculamente entregue demais à outra pessoa pra ser seu maldito refúgio. "Seu amor é a pior droga que eu já experimentei, Taeyong... e eu sei que é ela quem vai me enterrar."

Uma frase pode resumir uma vida da mesma forma que pode resumir uma morte.
Nunca vamos viver o bastante pra compreender porquê tomamos certas atitudes e, infelizmente, nenhum remorso por mais profundo e sincero que seja é capaz de apagar essas marcas do nosso histórico.

Tudo dura o tempo necessário pra um recomeço.

Interlúdio | JaeyongOnde histórias criam vida. Descubra agora