Anônimo

80 9 0
                                    

Eu havia abandonado meus antigos hábitos e adquirido outros que delinearam o novo desconhecido que surgia no horizonte do meu olhar ao ver meu reflexo no espelho.
Seria irreversível e eu mal podia esperar por isso.

Não demorou muito pra eu sair daquele buraco lutuoso exagerado de memórias ruins e conseguir um outro para morar.
O Sr. Lee deixou que eu me arranjasse provisoriamente no antigo depósito de suprimentos do mercado. Como o movimento de clientes havia aumentado muito ele precisou construir um local maior e mais arejado para estocar as dezenas de caixas com mercadorias que chegavam semanalmente.
Existia um cheiro distintivo de pepinos em conserva impregnado nas paredes do local, mas aquilo não me incomodava. Nem o mofo que coloria o forro degradado, nem os ratos que passeavam livremente pelo pequeno espaço, nem a sensação claustrofóbica de ficar em um ambiente tão circunscrito... Nada. Aquele seria o meu refúgio e eu não precisava de qualquer luxo para aliviar as desilusões e erros que se acumulavam dentro de mim.
Móveis novos, comida dentro de uma geladeira que funcionava, um fogão com acendimento automático, uma televisão com boa resolução e Kuro.
Kuro eram os olhos amarelados que me espiavam sorrateiramente por entre as frestas da janela do que era meu novo quarto enquanto esperava pacientemente que eu deixasse um pouco de leite e um petisco qualquer em algum canto do lugar - ele era exigente, então não funcionava deixar apenas os roedores como banquete.
Eu não estava preparado e muito menos disposto à cuidar de outra vida além da minha, mas confesso que me agradava saber que eu era lembrado mesmo que fosse apenas como "fornecedor de alimento" para aquele gato de rua.
Yuta foi quem deu o nome que significava negro em japonês. Conveniente, mas pouco original.
Na verdade Yuta era alguém excepcional no sentido mais literal da palavra. Ele conseguia ser engraçado sempre que resmungava em seu idioma nativo ou quando fingia ainda ter um pingo de inocência enquanto abria o zíper da minha calça com um olhar cheio de intenções... mas, Deus, como ele era apelativo. Era quase impossível suportar sua voz quando ele teimava em me acusar de não amá-lo.
Ele podia não estar totalmente errado em duvidar dos sentimentos que eu raramente demonstrava, mas ele não tinha direito ou moral de exigir que eu me apaixonasse por ele sendo que sempre deixei translúcido o fato de desejar seu corpo, não seu coração.
Por que todos temos a mania de querer o que não podemos ter?
A impressão que se fixa em cada caso é exatamente a mesma. Essa renitência em tentar alcançar o que é transparente aos nossos olhos e intocável por nossas mãos.
No início negamos a vontade que advém justamente em não aceitar o que no fundo mais queremos pois achamos que contestar é mais válido que admitir.
Yuta almejava que eu o tocasse com a intensidade de uma primeira paixão. O que ele mais queria era que meus lábios o beijassem com delicadeza e afeto, mas eu só queria fodê-lo.
Não me julgue, por favor. Eu deixei todas as minhas cartas viradas para cima nesse jogo infame no qual entramos em consentimento. Nunca prometi absolutamente nada à ele. Mas ele preferiu se enganar ao aceitar que nunca seria amado da forma que idealizada.
Meu amor era uma aberração.
Cada célula do meu corpo havia sido alterada reinventando meu DNA.
Eu não era a mesma pessoa e quem eu por tanto tempo aparentei ser estava muito distante da minha primeira versão.
Sem querer envolvi muitas vidas e consequentemente muitas mortes no traçado sinuoso por onde eu divaguei até chegar à essas palavras.
Quer saber qual foi o maior e mais decisivo erro que o Yuta cometeu?
Não foi a casualidade de ter sido contratado pra me substituir na equipe de estoquistas assim que eu subi de cargo, ou ter propositalnente se despido no vestiário improvisado do pequeno mercado se "surpreendendo" com meus olhos arregalados ao vê-lo seminu, nem quando nos beijamos pela primeira vez em seu apartamento pouco antes da nossa quarta ou quinta transa - não éramos antiquados então primeiro fodemos, depois nos beijamos. Foi numa sexta-feira de primavera quando ele me levou para um bar com música ao vivo no centro da cidade.
Eu nunca fui adepto desses lugares que formigavam gente e cheiravam a bebida barata, mas estava inclinado em agradá-lo ao menos uma vez sem que ele precisasse implorar ou me importunar até que eu cedesse.
Chegamos pouco depois da meia noite e o local já estava lotado. Ele me segurou pela mão e se embrenhou pelas lacunas esquecidas entre os corpos que moviam desritmados no salão de entrada. Nosso objetivo era nos embriagarmos até esquecer de qualquer pudor que nos impedia de fazer parte daquele vórtice de conversas paralelas e risos descontrolados, então fomos até o outro lado aonde ficava o bar.
Yuta sorriu olhando fixamente na direção de algo que eu não podia distinguir por conta da fumaça de gelo seco que se difundia no ar com alto teor alcoólico.

"- Hey, eu preciso te apresentar à alguém! Venha!" - ele disse me puxando até o balcão de mogno espelhado aonde haviam alguns rapazes escorados bebendo qualquer coisa que cheirava a menta.

Eu fui embalado pela empolgação dele até perder todo o equilíbrio que me mantinha em pé naquele momento.

"- Taeyong, esse é Jaehyun! Um bom e velho amigo."

Alto, pele alva, corpo esguio, lábios avermelhados, olhar marcante, voz penetrante...
Ali estava o motivo de eu não estar mais aqui agora.

Interlúdio | JaeyongOnde histórias criam vida. Descubra agora