Antes de partir

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ANTES DE PARTIR

   Passava em frente àquela lanchonete todos os dias, há exatamente 3 meses. 

   E há exatamente 3 meses ele via a mesma figura sentada ao lado da vitrine, com o olhar perdido e as duas mãos segurando uma caneca de café quente. Talvez fosse os cabelos longos e negros, ou o seu semblante vazio. Não sabia dizer bem o que o levava a observá-la por tanto tempo, imerso. Seu ônibus sempre atrasava e ele usava isso como desculpa para permanecer em frente a lanchonete, encostado no ponto de ônibus e com os olhos fixos nela.

   Ela nunca o notava. Seu olhar estava sempre à frente ou na caneca de café em suas mãos. Vez ou outra bebericava um pouco da bebida e a largava de lado, dando um suspiro e jogando a cabeça para trás. E aí o seu olhar fixava no teto e assim ficava até o ônibus parar no ponto e dar uma buzinada ensurdecedora. Por vezes ele acreditou que aquilo não devia ser real. Todos os dias, no mesmo horário, no mesmo lugar, na mesma posição e fazendo as mesmas coisas. Ou era um robô, ou era uma pessoa profundamente vazia.
   O que, na verdade, é quase a mesma coisa.
   Mas ainda assim continuava observando-a. Achava belo o modo como os cabelos negros caíam leves sobre os ombros, fazendo um contraste com sua pele bem branca e as roupas delicadas que sempre vestia. O vestido de hoje era diferente, em um tom azul claro que a deixava mais delicada do que o normal. Achava gracioso o modo como ela lentamente levava a xícara aos lábios rosados e bebericava a bebida, como se fosse só para sentir o gosto. Só um pouquinho, só para sentir o gostinho, porque ele sempre está quente demais e vai ver ela nem gosta tanto assim de café. Talvez seja apenas uma lembrança bonita de alguma época que passou. Talvez no banco à sua frente, onde seus olhos sempre se perdiam, houvesse outra coisa captando a sua atenção.
   E as atenções nunca estavam sobre ela. Era quase como se ela fosse um fantasma no meio de um local lotado. Todos passavam direto por sua figura. Talvez fosse solidão ou nostalgia. Talvez fossem problemas pessoais ou era o mundo o causador de tudo. Às vezes ele toma essas decisões sozinho, de repente ele acha que a sua vida anda boa o suficiente e está na hora de retirar algo. Seria incomum se não retirasse.
   Os dias eram sempre frios, e ela sempre esfregava as mãos uma na outra. De qualquer forma, aquilo não parecia aplacar o frio que ela sentia. No fundo, os três casacos que ele usava também não aplacavam o seu frio. Ele vinha de dentro, lá do fundo. Talvez fosse um ponto em comum entre eles. Se parassem para conversar um dia, ele já poderia puxar esse assunto: o quanto o frio nos engole, menina.
   Um dia, quando ele pôs os pés no ponto de ônibus e seus olhos automaticamente foram para a vitrine, viu que ela o observava. O susto veio naturalmente. Ele engoliu em seco ao se deparar com os olhos escuros o analisando. Ela já não tinha uma expressão tão vazia, mas sim de que ao que parecia, era a primeira vez que ela se dava o prazer de olhar o mundo. Mas ela não olhava para a rua, a calçada, as outras pessoas que passavam ou para as luzes dos postes.
   Ela olhava diretamente para ele.
   Talvez sempre soubesse que ele estava ali, observando-a. Ele automaticamente sentiu temor de que ela pensasse que ele era algum tipo de maníaco, mesmo com o casaco maior do que seu corpo, a mochila nas costas, o óculos escorregando no rosto e sua eterna expressão de estudante à beira de um colapso nervoso. Era assim que ele se sentia, todos os dias, a todo momento, antes de pisar naquele ponto e sentir paz ao olhar a figura frágil no outro lado do vidro.
   E agora, ele era observado.
   Tentou respirar fundo e disfarçar, desviou o olhar. Olhou para a rua, a calçada, as pessoas, as luzes, o céu quase escuro. Mas seu olhar sempre se voltava para ela, e o dela não desviava dele por um momento sequer. Se permitiu olhá-la também. E ficaram nessa troca por alguns minutos, antes de ela lentamente sorrir. Ele engoliu em seco, tentando dar um sorriso contido de volta.
   E, inesperadamente, ela pegou a sua bolsa e levantou, saindo da lanchonete. Ele sentiu seu coração ficar à mil. Queria correr até ela e perguntar seu nome. Onde você mora? Você gosta de gatos? Qual a sua cor preferida?
   Mas enquanto ela se afastava cada vez mais, ele decidiu que no dia seguinte entraria naquela lanchonete e a conheceria. De uma vez por todas, sem medo. Subiu no ônibus com uma confiança que jamais havia sentido. O dia seguinte seria decisivo. E realmente foi.
Pois quando ele chegou, não havia café.
   Ele ainda entrou no estabelecimento, passou os olhos por todo o local à procura dela. Fixou seus olhos no lugar em que ela sempre estava, todos os dias, há 3 meses. Ela nunca havia faltado, e agora parecia ter aberto um enorme buraco com a falta dela.
   Tentou ignorar a sensação de que um buraco igualmente gigantesco se abria em seu peito, mas era impossível. Ao menos, - ele pensou - ela soube que existia, antes de partir.

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