Azul

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AZUL

   Ele passou os olhos pelo local lotado de pessoas. Não sabia se era por causa do álcool em seu sangue ou devido à fraca iluminação, mas não conseguia enxergar as coisas com clareza. Sentia a maior parte dos olhares sobre si, ansiosos e admirados. Dedilhava os dedos com facilidade pelas cordas do violão em seu colo, enquanto cantava calmamente. Os olhos ansiosos, olhando para cada canto à procura dela.
   Ele já sabia, mas não queria admitir. Era menos doloroso se iludir e imaginar que a qualquer momento os olhos azuis encontrariam com os seus no meio da multidão.
   Assim que a melodia acabou, todos aplaudiram. Ele deu um sorriso fraco e entregou o violão ao outro cantor que o substituiria. Assim que desceu do palco, sentiu mãos e abraços. Beijos no rosto dados por garotas ansiosas que frequentavam aquele bar esquisito todos os sábados apenas para vê-lo. Alguns amigos o parabenizaram, mas ele apenas saiu de perto de todos. Queria respirar, e aquele não era o melhor lugar. Pegou uma bebida no bar e sentou em uma mesa vazia, no canto mais isolado do local. Tentou respirar fundo e abstrair daquilo tudo. Fechou os olhos enquanto bebia um pouco da cerveja sem gosto, e tentou se imaginar no melhor lugar em que esteve.
   Era quente, macio e doce. Recebia cafunés na cabeça de brinde. Para quem olhava de fora, diria que aquilo era apenas um colo. Mas para ele, era como estar no céu. Seu paraíso particular. Lembrava de abrir os olhos e se deparar com o par de olhos azuis o olhando ternamente. Ela sempre sorria nesses momentos. Seus lábios se esticavam em uma curva delicadamente perfeita.
   Abriu os olhos lentamente, sentindo a falta de ar de sempre. Não sabia se era o lugar - do qual ele já estava saturado -, ou se devido às pessoas ao seu redor. Um pequeno lugar lotado de pessoas vazias. Olhou a garrafa de vidro em sua mão e imaginou se ela gostaria de vê-lo daquela forma. Talvez tenha sido isso que a fez desistir.
   Mas, parando para pensar melhor, talvez tenha sido tudo. Nunca foi um mar de rosas. Nunca foi um relacionamento perfeito repleto de felicidade, porque ele tinha o dom de acabar com as sensações boas no fim do dia. Não era intencional, ele não queria fazer e nem falar tudo aquilo, mas era inevitável. Talvez fosse a bebida, o cigarro, as garotas que passavam a mão nele ou o valor extremo que ele dava às noites naquele lugar, ao invés de preferir passá-las ao seu lado, na calmaria.
   Era irônico o modo como ele sempre preferiu as noites naquele lugar sujo à ela.
Agora que passava a maior parte do tempo ali, a preferência mudou.
   Sentiu a bebida querer voltar por onde entrou e achou melhor largá-la ali, junto com todo o resto. Sentiu alívio ao respirar o ar frio do lado de fora. A rua estava praticamente deserta, tendo apenas com algumas pessoas conversando em frente à entrada do local. Não estava enxergando muito bem, mas decidiu entrar em seu carro e dirigir. Sempre imprudente, como ela já recriminava. Sentia falta até das broncas que ela dava. Pensou em ir para casa, mas seria o mesmo vazio. Deu a volta e se dirigiu até a rua dela. Sorriu debilmente ao ver os arbustos e as flores azuis espalhadas por toda a rua. Parecia que tudo que estava próximo à ela se tornava delicado e doce.
   E ele tentava se desvencilhar e se afastar disso, com medo de acabar deixando de ser o que era. Por quê?
   Estacionou em frente à casa dela e saiu do carro. Encostou-se no mesmo, enquanto tirava um cigarro do bolso e o acendia. Tragou fortemente, assoprando a fumaça para o alto em seguida. As luzes da casa branca à sua frente estavam todas as apagadas. Provavelmente ela já dormia encolhida com o seu gato pulguento ao lado. Nunca havia ido com a cara do felino, mas teve que admitir que, bem ou mal, ironicamente o gato a fazia mais feliz do que ele fez em meses.
Ficou parado ali, observando cada detalhe, até o cigarro acabar. Jogou o que restou no chão e pisou em cima, desejando mentalmente esquecer todos os detalhes, a rua, as flores, a casa com tantas lembranças boas armazenadas e o azul. Era o que desejava todas as noites.
   Na manhã seguinte, quando a garota saiu para pegar o jornal, avistou o cigarro pisoteado na calçada. Olhou ao redor, com pesar. Respirou fundo o ar frio da manhã, enquanto se agachava para pegar o que restou dele. Abriu a lata de lixo e jogou o cigarro ali, junto com todos os outros dos dias anteriores.
   Todas as noites, antes de dormir, jurava a si mesma que o esqueceria. E em todas as manhãs as memórias estavam em sua porta.

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