Aonde quer que vá, fique

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AONDE ONDE QUER QUE VÁ, FIQUE

   Acordou com um toque do celular desgastado na mesa de cabeceira. Coçou os olhos e esticou o braço para alcançar o aparelho, enquanto um sorriso leve se espalhava em seu rosto, já imaginando quem o acordaria àquela hora. Mas o sorriso foi desmanchado pelo conteúdo da mensagem.
   O que seria tão urgente para que ela mandasse aquela mensagem naquele horário? Digitou uma resposta rapidamente, ansioso para saber o que havia acontecido, mas ela provavelmente havia saído de perto do celular. Decidiu resolver sua vida enquanto ela não respondia, afinal, logo teria que ir trabalhar. Se pegou imaginando sobre o que ela queria conversar; será que havia acontecido algo com seus pais? Apesar de detestá-los - e o sentimento ser mútuo - sabia o quanto aquilo seria ruim. Mas logo aquilo passaria, talvez. 

   Eles não aprovavam o namoro do casal pelo fato de ele ter uma vida desandada, de certa forma. Mas ele estava cuidando para que tudo voltasse aos trilhos e ele pudesse dar estabilidade àquela relação.

   Ouviu o celular tocar novamente enquanto secava o rosto. Saiu do banheiro rapidamente, movido pela curiosidade, e pegou o celular enquanto deitava novamente.

   "Pode vir à minha casa hoje?"

   Sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Ela nunca pedia que ele fosse à sua casa, por motivos óbvios. Realmente havia acontecido algo. Tentou fazê-la falar, mas ela se desvencilhava e insistia para que ele fosse vê-la. Ele concordou, relutante, e logo foi trabalhar.

   Passou o dia distraído, criando teorias em sua mente criativa, tentando encontrar uma solução para o problema que ele nem sabia qual era. Ainda. Quando chegou o fim do expediente, largou o avental de garçom no armário, pegou suas coisas, montou em sua bicicleta e correu até a casa dela. Era a segunda casa mais bonita do condomínio, no fim da rua, toda branca com um grande jardim frontal com flores bem cuidadas pela sua mãe.

   Talvez, se sua mãe dedicasse tanto carinho à vida da filha quanto dedicava àquelas flores, as coisas fossem mais fáceis e menos dolorosas.

   Largou a bicicleta na lateral da casa, um pouco escondida, pois sabia que bater na porta da frente e pedir para entrar seria demais. Ela pareceu ouvir a sua chegada, pois apareceu na janela do quarto rapidamente. Havia uma escada escondida entre os arbustos que eles sempre deixavam ali para quando ele a visitasse. Assim que a escalou e entrou no quarto bonito da garota, ele a viu sentada na cama com a feição preocupada. Engoliu em seco. O sol já havia sumido do céu e o quarto se encontrava escuro. Aquela atmosfera piorava tudo.

   Deixou sua mochila debaixo da janela e se aproximou dela, relutante. Ela tentou sorrir um pouco, talvez para tentar tranquilizá-lo, mas aquilo não melhorava nem a ela.

   A notícia chegou como um soco no estômago. Casamento.

   Em que século estavam? Até onde ele sabia, casamentos arranjados estavam fora de seu tempo, e os que ocorriam eram vistos como algo abominável. E com razão. Mas os pais dela pareciam aprovar a ideia.

- Não podem te obrigar - Sussurrou. - Sabe disso.

- Mas insistem...

- Mas não podem - Sua voz soou um pouco mais descontrolada e ele se recriminou mentalmente. - Pare de abaixar a cabeça para eles, você nunca irá viver se agir dessa forma. Eu estou correndo atrás, eu vou resolver a minha vida e...

- Eles nunca vão nos aceitar. - Ela engoliu em seco, olhando-o com aflição. - Sabe disso tanto quanto eu. Não irão nos dar paz mesmo que você apareça aqui com um carro e uma conta bancária cheia.

   Ele sabia disso. Sabia que foi difícil até ali, até mesmo mantendo um namoro escondido, e eles nunca iriam aceitá-lo de qualquer forma. Mas talvez, se esperassem mais e descartassem aquela ideia absurda de jogar sua filha para outra pessoa como se ela fosse uma mercadoria... Talvez se fossem menos preconceituosos e desesperados... Talvez assim ele...

   Soube que era o fim quando sentiu o toque da mão dela na sua. Não conseguiria suportar olhá-la, então se limitou a apertar a mão pequena da garota na sua, enquanto mantinha seu olhar focado em um canto qualquer. Ela encostou sua cabeça em seu ombro e ele pôde ouvi-la chorar. Tentou controlar as próprias lágrimas, mas foi impossível. Não entendia como aquilo estava acontecendo, não entendia como ela podia estar concordando com tudo aquilo.

- Você quer isso, não quer? - Perguntou com a voz falha. - Quer se livrar de mim, pois pensa como eles.

- Não diga isso. - Ela suspirou. - Sabe que não é verdade. Sabe que amo você. Mas eles farão da nossa vida um inferno e...

- Não precisa mentir para eu me sentir melhor. - Ele sorriu amargamente, soltando a mão dela. - No fundo, pensa que eu nunca irei conseguir superar as minhas expectativas. Tampouco as suas. Muito menos as de seus pais.

   Ela ficou em silêncio. Para ele, aquilo foi o suficiente. Fez menção de levantar da cama, enquanto ela o segurava pelos ombros para mantê-lo onde estava, em uma atitude desesperada. Ele desvencilhou-se de suas mãos, sentindo que iria desabar ali mesmo. Ela o chamou baixinho, temendo que seus pais os ouvissem, enquanto ele pegava sua mochila e sentava na janela, se preparando para descer a escada. Ela o alcançou, com os olhos vermelhos e os lábios trêmulos. Não conseguiu olhá-la por muito tempo, enquanto ela insistia para que ele ficasse e a ouvisse.

   Mas ouvir o que? No fundo, ele sabia que ela pensava como seus pais. O cara fracassado que não tinha nada, havia perdido tudo e agora tentava debilmente ser algo na vida. O cara que parecia um idiota tentando ficar com a filha perfeita deles. O cara patético que morava de aluguel em um lugar de quinta categoria, que trabalhava fizesse sol ou chuva para um dia, com sorte, chegar aonde eles estavam.

   Não, o lugar ao lado dela seria destinado a alguém no nível dela. Alguém que cresceu em uma daquelas casas modelo de um condomínio caro. Que usava roupas bonitas e um perfume que custava todo o salário dele, o miserável.

   Quando se inclinou na direção dela correndo o risco de cair da janela e a abraçou, soube qual seria o fim de tudo aquilo. Sentiu o peso da consciência no peito, e a sentiu escapar pelos olhos. Ela tentou segurá-lo novamente, enquanto cobria os lábios dele com os seus, mas ele abaixou suas mãos e desceu a escada, pegando sua bicicleta e voltando para a vida comum que levava.
Nos dias que seguiram, não tiveram mais notícias um do outro. Ela tentou ligar, mas ele não atendeu. Ela mandou mensagens, mas ele as ignorou. Mas não conseguiu conter a vontade de passar na frente da casa da garota, como quem não queria nada, para dar uma olhada. 

   Já era fim de tarde e o sol quase desaparecia. O bairro parecia ainda mais perfeito e intocável, com todas as suas gramas verdes. E quando chegou no início da rua, mesmo de longe, pôde vê-la. Bonita em suas roupas caras e cabelo solto sobre os ombros. Parecia ainda mais bela e leve do que nunca. Mas quando ele avistou a figura ao seu lado, engoliu em seco.

   Eram o par perfeito. O orgulho dos pais.

   Desviou o olhar para uma folha que caía no chão ao seu lado e achou melhor ir embora. Talvez fosse melhor assim, - tanto para ela quanto para ele. E, ao que parecia, ela estava se saindo bem.
   Deu meia volta com a bicicleta, certo de que deixaria tudo para trás e nunca mais saberiam um do outro. Porém, não deu tempo de captar o olhar que ela lançou a ele, de longe, pedindo para que ele a levasse junto. Aonde onde quer que fosse.

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