I- O começo

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Estava chovendo, da primeira vez que o vi.

Era noite, no parque. Tudo aconteceu muito rápido. Eu sai de casa correndo, fugindo, e me deparei com ele. De primeira ele não notou que eu estava ali. Eu parei, atordoada, instintivamente absorvendo cada detalhe da sua aparência. Foi a primeira vez que notei quão bonitos eram seus olhos, mesmo tendo somente uma fraca luz do poste ao lado. Ele sorria, mas pude ver que estava chorando. Suas lagrimas se misturavam com as gostas da chuva no seu rosto. Por alguns segundos, fiquei sem ar.

Me sentei no banco verde um pouco a frente. Era de madeira, o único banco naquele pequeno parque. Eu o olhei, fixando-o. Tão bonito. Uma beleza um tanto quanto única. Ele me lembrou de uma tela que sempre quis pintar mas não conseguia. Cabelos castanhos molhados e alongados pela chuva combinavam com a cor de seus olhos. Me perguntei se seria possível fazer uma combinação de tintas para obtê-la. Uma cor cedro que poderia embriagar os desavisados pela pura semelhança a cor de Whisky. Lábios finos e bem definidos, um queixo curto com barba rala . Ele pairava alto, muito mais do que eu, com o rosto virado para cima absorvendo a chuva. Seus lábios tremiam levemente. Era realmente uma visão e tanto.

Foi como em um filme americano cliché. Ele me viu e sorriu. Me impressionei com seu sorriso, que mesmo ao chorar era extremamente sincero. Toda aquela cena era sincera, tão inocente e verdadeira, me cativando imediatamente. Foi rápido e impulsivo. Em retrospectiva, penso em quanto ele deveria estar triste e sozinho para fazer o que fez. Se sentou ao meu lado pouco, e lá ficamos. Após uma eternidade de silencio que deve ter durado apenas alguns minutos, escutei leves soluços. O leve começou a se transformar em pesado, e a chuva intensificou.

Não falei nada. Não queria falar. Sentia como se eu estivesse em um quadro, como se o mundo estivesse congelado em um momento. Eu não o conhecia, mas não senti que precisava. Não pensei em como era estranho, pelo menos não naquele instante, um homem que eu não conhecia sentar do meu lado enquanto chorava. Mas a intimidade do momento, tão intensa e desavisada foi extremamente bem vinda. Eu bastava para afugentar sua solidão. Pensei que se eu mexesse um pouco, o momento estaria quebrado. Não queria arruinar o quadro. A beleza do momento me envolveu.

Chuva e choro, trovão e soluço, ao mesmo tempo misturados compunham uma sinfonia contraditoriamente reconfortante. Impulsivamente, peguei suas mãos e as apertei, tentando afastar o senso de solidão que pairava naquele parque quase deserto os três e quarenta e cinco da madrugada.

                                                                                      ***

Acordei com uma leve dor de cabeça. Sentei-me na cama e me perguntei se o que tinha acontecido na noite anterior não fora um sonho. Não era. Aquele garoto e seus dedos desconhecidos entrelaçados aos meus eram reais.

Um sorriso se formou na minha cara, porem eu sabia que era questão de tempo até que ele se desfizesse. Se os acontecimentos do dia anterior tinham sido reais, os de antes do nosso encontro também tinham. Quer dizer que a minha mãe realmente tinha bebido, que o meu pai realmente tinha bebido. Que os gritos da minha mãe tinham sido tão reais quanto a lagrimas daquele homem que eu nem mesmo sabia o nome. Senti como se nunca teria a oportunidade de perguntar. Como se eu não precisasse.

Um turbilhão de pensamentos se formou na minha cabeça, tornando-me irrequieta. Os acontecimentos da noite anteriores eram singulares demais, e talvez por esse motivo a imagem da tela se formou instantaneamente na minha cabeça. Era o quadro que eu sempre queria fazer e nunca tinha conseguido. Ri. Cliché, mas verdade.

Na tela branca em frente a minha escrivaninha desenhei de leve com um lápis a cena. O ceu, a chuva e ele. O banco de madeira tão solitário quanto aquele homem. O parque deserto e pequeno ficava em segundo lugar para a presença desnorteante que era ele. Não desenhei sua cara de perto, mas seu rosto virado para cima. Ele fazia parte da paisagem e ao mesmo fazia a paisagem. Tentei ao máximo fazer jus a imposição que era a sua presença.

Momentos InfamesOnde histórias criam vida. Descubra agora