Agulhas

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Viro a maçaneta, relutante. Eu não estou pronta para ver, mas eu preciso desesperadamente de qualquer vestígio dele. Quero sair correndo, quero me esquecer de tudo, mas não posso. Quero sair correndo, penso novamente. Quero sair correndo e me deparar novamente com ele em um parque. Quero limpar suas lagrimas dessa vez e dizer que vai tudo ficar bem. Que a vida dele não precisa acabar ali, se ele só conseguir aceitar a minha ajuda dessa vez. Mas eu perdi a minha chance. Eu perdi a chance dele.

Entro na sala. Tudo parece normal. A mesma sala em que eu convivi por mais de dois anos, praticamente intocada. O mesmo sofá verde que não combinava com o tapete vermelho. O projetor no teto, apontando para a tela branca que ficava no lugar da televisão. Os moveis brancos, as janelas grandes. As cortinas brancas que impediam a luz de entrar. Tudo, tudo exceto Jason.

Tudo, exceto tudo.

Olho para o chão e vejo o tapete levemente desarrumado, enrugado por um pé desatento que ali passou. Imagino Jason andando, cambaleante e enrugando o tapete. Imagino Jason sentando no sofá. Imagino Jason aqui, andando, escolhendo um filme para ver, me chamando. Sorrio, imaginando a cena, sorrio lembrando de sua voz. Vida é uma coisa tão engraçada, penso. Presença é uma coisa tão engraçada. A pessoa está ali, e em segundos, não está mais. E você é jogada em uma realidade fria e distante.

Porque eu tenho que passar por isso de novo?

Meu coração pesa ao bater enquanto me aproximo da poltrona perto das cortinas. Hesitante, ajeito o tapete. Espalhadas pelo chão embaixo e ao lado do tapete, agulhas e seringas murchas. O som do meu coração é ensurdecedor. Pego as agulhas e as junto, mas não tendo coragem de joga-las fora.

Não quero jogar fora a última decisão que Jason tomou.

Sento no sofá, lágrimas escorrendo pelas minhas bochechas quentes. A situação parece tão ridícula. Sinto como se a qualquer momento Jason fosse entrar em casa, e eu fosse confronta-lo com as agulhas na mão. Brigar com ele é o que eu mais quero no momento. Mas ele não o faz. Como poderia? Me sinto mais sozinha do que nunca.

Pego uma das seringas, uma ponta de sangue seco ainda na agulha. Encaro-a por um momento, tentando decifrá-la. Uma parte de mim quer quebra-la. A seringa, o sofá, a janela, a casa inteira. Sinto uma onda de raiva passar pelo meu corpo, aquecendo-me. Raiva. Me levanto e vou até a cozinha, e pego uma caneca com as inscrições "Ottawa Love" e a jogo no chão. Quase não escuto o barulho resultante do impacto, pois o meu coração ainda bate muito forte. Tão forte que mal consigo pensar, mas parece que eu só consigo pensar. Não consigo fazer mais nada, impossibilitada. Afinal, o que traria Jason de volta? O que eu poderia fazer naquele momento para que ele pudesse me abraçar e me dizer que estava tudo bem. Ele disse que ia parar, pensei. Mas como culpa-lo? Nada daquilo era culpa dele.

Corto a palma das minhas mãos ao tentar recolher os cacos da caneca. É a gota d'água. Meu sangue brota, inocente e tímido, dos pequenos cortes que se formaram. Era o meu corpo, vivendo. Meu coração continuando a bater, minha respiração, minha vida continuando. A imagem de seu caixão aparece forte em minha cabeça, vivida.

Revirando o cabinete de licores, pego a garrafa de vidro mais proxima a mim. É pesada e fria, mas não me dou ao trabalho de ler o rotulo.

Gole após gole, sinto minhas pernas adormecerem, depois os meus braços, depois o meu corpo inteiro, inerte, no chão. De certo modo, foi assim que tudo começou, o amor, a magoa, a tristeza, o desespero, a risada. Meu habito ruim que não me consumiu, mas consumiu Jason.

***

-Vamos ter uma casa na praia e dois cachorros- eu falo, minha voz oca- você vai filmar um deles e fazer um curta. Os cachorros não podem ser verdes, mas o sofá pode. Pode sim. Um dia, os nossos filhos vão ver esse curta? Eu gostaria que eles vissem como era o mundo antes deles nascerem- eu continuo repetindo palavras do passado- mas se você tocar nas minhas telas antes delas secarem, os seus filmes vão pro mar...

***

-Wake Up!- as palavras se tornam inteligíveis com o impacto da agua fria sendo jogada na minha cara- you don't get to pull this shit on me today. Please don't do this- sua voz sai tremula.

Quero pedir desculpas e dizer que tentei concertar a caneca. Quero levantar, mas não consigo.

-Why are you bleeding? Jesus, Ana. Don't do this. He would be heartbroken if he saw you like this.

Tento formular uma resposta, mas só me vem soluços. Não sou nada. Eu não consigo responder porque eu não consigo existir. Sinto minhas pernas cederem novamente, mas Alex me segura e me pressiona contra a pia. Ah, sim. Estou no banheiro da casa do Jason. Eu fiquei bêbada, mas Jason morreu, então não importa, não é mesmo?

Sinto bile quente subir do meu estomago até a minha garganta. Percebendo, Alex me traz até a privada, e fico acocorada em uma mistura de vomito e choro. Alex segura o meu cabelo.

-Põe tudo pra fora- ele fala calmamente. Eu consigo sentir mais calma vindo de Alex. Ele está falando em português agora- eu sei que é difícil, mas ponha tudo para fora.

Meu choro se intensifica, e me viro para embrulhar a minha cara no seu peito. Ele me abraça, passando as mãos pelos meus cabelos. O cheiro pungente de álcool e de bile inunda o banheiro, mas permaneço na mesma posição. Ouço leves e discretos soluços de Alex, e o puxo para mais perto de mim.

***

Horas depois me encontro novamente na cozinha, varrendo os restos da caneca que tinha quebrado. Todos os meus movimentos parecem pesar, tudo parece requerer dez vezes o esforço. Talvez essa sensação nunca vá embora, penso. Talvez agora tudo seja mais difícil.

-Me desculpe pela sua camisa- eu digo, me referindo ao tecido agora sujo com os restos do meu almoço. Minha voz sai fraca e rouca.

-Isso não me preocupa- ele fala, esboçando um sorriso tristonho.

-Obrigada por tudo- eu digo, um nó na minha garganta se formando novamente.

-Não...- ele tem que respirar antes de conseguir continuar- não fale como se tudo tivesse acabado.

Noto que os cabelos de Alex, que geralmente são cuidadosamente penteados para cima, estão para baixo, fios loiros bagunçados cobrindo sua testa. Ele parece triste. Ele parece desolado. Me pergunto como eu devo parecer em seus olhos.

-Me passe o lixo- é a única coisa que eu consigo dizer.

***

Ficamos sentados no sofá até amanhecer, em silencio. Quero dizer algo, mas nada parece apropriado. Alex está sentado do meu lado, olhando para frente. Tem tanta dor em sua expressão.

Vejo o DVD de centopeia humana jogado na mesa de centro, e uma pontada de dor passa por mim. É o fim. Como não falar como se não tivesse acabado? Eu estava no fim da linha, dois anos subitamente cortados e jogados fora. Lagrimas começam a cair dos meus olhos, e continuo fixando aquele DVD.

***

-Vamos?- ele pergunta, já do outro lado da porta.

Aceno com a cabeça e dou um passo, me sentindo vazia por dentro. A última coisa que eu quero é ir embora, porque continuo com a sensação de que eventualmente Jason iria voltar. E ah, como eu quereria estar em casa para recebê-lo. Dou outro passo e ouço o barulho do molho de chaves de Alex fechando a porta.

No elevador, me lembro do corpo de Jason no caixão, inerte e frio. Ele está morto, e nunca mais vai voltar. Jason está morto. E nunca mais vai voltar. 

Momentos InfamesOnde histórias criam vida. Descubra agora