3 - O PRIMEIRO PACIENTE

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Minha jovem colega,

Imagino que você seja recém-formada (o que não significa apenas recém-saída dos bancos de sua faculdade, mas disso falaremos outra vez), prestes a começar a atender seu primeiro paciente. Você poderia perder coragem, perguntando-se: mas quem me escolherá como terapeuta, com tantos profissionais experientes e medalhões na praça? Um kamikaze?

Pois é, deixe que lhe conte a história de meu primeiro paciente.

Resolvi me tornar psicanalista em 1974. Antes daquela data, eu ensinava (teoria literária) na Universidade de Genebra, onde havia terminado minhas graduações. Não tinha a menor ambição ou desejo de me tornar psicanalista. Mas, há anos, passava quatro dias por semana em Paris, para me analisar. Da psicanálise eu esperava que curasse minhas assíduas angústias e uma gastrite crônica que, desde a adolescência, fazia do Buscopan meu companheiro mais fiel.

As angústias se amenizaram, e a gastrite sumiu. Por isso mesmo a psicanálise começou a me interessar seriamente; passei a frequentar, além do seminário de Lacan (a missa semanal parisiense), cursos e grupos de estudo da École Freudienne de Paris, que era a instituição à qual pertencia meu analista. Mesmo assim, seguia pensando que meu futuro seria pesquisar, ensinar e escrever, certamente não clinicar.

Em 74, então, recebi uma proposta que me acuou. Alguém tinha gostado de um livro que eu acabara de publicar e que era uma interpretação da grande mudança na pintura francesa de Courbet a Duchamps. Esse alguém (Yves Velan, um escritor e um homem fora do comum, que infelizmente perdi de vista) ensinava numa universidade americana e propôs que me candidatasse a um posto que coincidia com minhas qualificações. As grandes decisões da minha vida sempre foram assim, na hora em que os ingredientes chegam na boca do funil. Aceitar a proposta americana significaria impulsionar de vez uma carreira acadêmica que, de fato, eu já começara, mas significaria também deixar Paris, minha análise e a École Freudienne. Pois é, decidi, de repente, que a vida acadêmica não era mais o que eu queria. A psicanálise me interessava mais.

Na École Freudienne de Paris, para que um membro começasse a atender, não era prescrito nenhum exame ou entrevista específica. Mas era preciso que, quando se considerasse pronto para receber seu primeiro paciente, ele anunciasse a decisão ao seu analista. O dito analista não daria nenhuma autorização, oral ou escrita que fosse; era apenas esperado que ele se opusesse, caso necessário.

O sistema parecia fácil demais, sem currículo para ser preenchido e sem entrevistas de seleção. Na realidade, era assustador, pois forçava cada um a encarar a responsabilidade de sua decisão sem um carimbo que o autorizasse. A ideia do consenso tácito do analista fazia a festa de alguns e o drama de outros. Os candidatos histéricos eram sempre convencidos de que seu analista mal tinha conseguido esconder o júbilo; os candidatos obsessivos nunca paravam de perguntar- se: será que ficou calado porque acha que estou pronto, porque não ouviu direito, porque considera apenas que não serei uma calamidade, porque acha que serei, mas não quis me magoar ou porque não soube o que dizer?

O fato é que, quando lhe comuniquei que começaria a atender pacientes, Serge Leclaire, meu analista, não disse nada. E lá fui eu.

Na época, com o salário de professor assistente da Universidade de Genebra (magro, mas em francos suíços), pagava minhas viagens (trem de segunda classe), minha análise e o aluguel de um apartamento de quarto e sala em que morava em Paris. Em Genebra, me hospedava em casa de amigos.

A transformação de meu quarto e sala do 32, rue St Paul, deu nisto: a sala se tornou sala de espera e o pequeno quarto se tornou consultório. À noite, a sala de espera se transformava em quarto, graças a um sofá-cama. Comprei minha poltrona numa liquidação da Samaritaine; a poltroninha para os pacientes, achei no mercado das pulgas; a base do divã, confesso que achei na rua; um amigo me deu um colchão que lhe sobrava; e uma amiga costurou uma colcha de retalhos que dava ao conjunto um aspecto tipo Freud dos pobres. A mesa (que ainda carrego comigo), encontrei na demolição de um bar, perto de casa. Estava pronto, só faltavam os pacientes.

Meu primeiro paciente foi indicado por uma amiga, Nicoil e SeIs , que era analista e bibliotecária da École Freudienne e que confiava em mim como futuro analista pela razão seguinte: ela sabia que, por mais que a psicanálise me tivesse conquistado, eu continuava apaixonado por muitas outras coisas que me seduziam tanto quanto e sobre as quais conversávamos assiduamente, repetindo capucinos num bar da rue Gay-Lussac. Falávamos com o mesmo prazer dos romances de Barbara Cartland ou do último prêmio Goncourt, das personagens mais excêntricas do século XVII (que era meu século preferido), da história da psiquiatria, de crimes verídicos, romances policiais e por aí vai.

O critério que, aparentemente, valeu para que ela me encaminhasse um paciente vale hoje para mim; na hora de encaminhar um paciente, prefiro os analistas cuja curiosidade para com o mundo, a vida e a cultura se estenda além das quatro paredes do consultório.

Quando chegou o dia da primeira entrevista do primeiro paciente, eu tinha uma preocupação dupla: queria que o apartamento tivesse cara de consultório, mas também queria que não tivesse cara de consultório no dia de sua inauguração. Afinal, eu pensava, qual paciente gostaria de descobrir que o analista em que ele vem depositar uma esperança de cura é um novato absoluto? Cuidei dos detalhes: uma certa desordem de papéis e notas na mesa, uma pequena desarrumação do acolchoado do divã, para mostrar que alguém já deitara ali, três ou quatro baganas no cinzeiro (na época não só eu, mas a França inteira fumava), para mostrar que, naquela tarde, já me debruçara sobre outros destinos cabeludos.

Esse primeiro paciente se analisou comigo durante sete anos. Era um jovem psiquiatra, que se tornou analista por sua vez. Alguns anos depois de ele terminar sua análise, quando eujá era um analista reconhecido e estabelecido, nos encontramos, por acaso, num congresso e conversamos um pouco. De repente, ele me perguntou: "Eu fui seu primeiro paciente, não fui?".

Hoje, responderia imediatamente a verdade. Na época, eu ainda me preocupava em defender a aura de mistério atrás da qual os terapeutas gostam de se esconder, sob pretexto de que o paciente precisa idealizar seu terapeuta. Portanto, fiquei perplexo e calado, com aquela cara de "Há!" que os analistas usam para fazer pensar que, primeiro, eles já estariam vendo a razão verdadeira da pergunta que está sendo feita e que, segundo, essa razão (desconhecida por quem pergunta) é infinitamente mais interessante do que a resposta que eles deveriam dar. Mas meu ex-paciente (aparentemente sua análise tinha funcionado) não deixou para menos e continuou:" Acho mesmo que fui seu primeiro paciente; não sei se você sabe, mas é o que eu tinha pedido para Nicolle, que me deu seu endereço na época. 'Quero um analista', eu lhe havia dito, 'de quem serei o primeiro paciente'. E acho que ela respeitou meu pedido.

Queria ser o primeiro paciente porque pensava que, como meus problemas eram meio banais, só um analista debutante me escutaria com toda sua atenção".

Gostaria de poder dizer que ele estava enganado, que, durante todos estes anos, escutei meus pacientes com a mesma paixão, vontade de entender e de dizer a coisa certa que eu sentia no começo daquela primeira análise. E é verdade que, até agora, consigo quase sempre me surpreender com cada história. Afinal, se um terapeuta não enxergasse (mais) a intensidade e a originalidade do drama e da tragédia por trás da eventual banalidade de cada vida que lhe é contada, ele estaria precisando de reciclagem urgente. Mas admito o seguinte: lembro-me do primeiro sonho daquele paciente em cada detalhe; não posso dizer a mesma coisa de todos os primeiros sonhos dos pacientes que seguiram.

Claro, nada garante que a voracidade da escuta e uma atenção exacerbada sejam as melhores conselheiras para um terapeuta. Além disso, dificilmente o desejo de ser o primeiro paciente de seu analista é apenas um jeito de garantir uma escuta especial e atenta.

Meu paciente escondia de seus pais algumas escolhas de vida, que, se fossem conhecidas, lhe valeriam um repúdio. No mínimo, era o que ele imaginava. Não estranha que ele quisesse ser, de uma certa forma, o legítimo primogênito de alguém para quem ele poderia contar "tudo". A escolha de um terapeuta é sempre guiada por razões um pouco mais complexas e reveladoras do que o próprio paciente imagina.

Essa história deixa alguns ensinamentos:

1) Nem sempre é verdade que os pacientes preferem terapeutas experientes.

2) Como os caminhos pelos quai s um paciente coloca sua confiança num terapeuta são muitos, se não são inúmeros, o mais simples talvez seja que nos contentemos em ser nós mesmos (não é preciso desarrumar colchas e deixar baganas nos cinzeiros). 3) A experiência certamente ajuda na conduta das curas, mas, de qualquer forma, seria bom que guardássemos sempre alguns elementos do espírito do debutante: a curiosidade, a vontade de escutar e, por que não, o calor de quem, a cada vez, acha extraordinário que alguém lhe faça confiança. Abç.


Cartas a um jovem terapeutaWhere stories live. Discover now