6 - CURAR OU NÃO CURAR

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Cara amiga,

Você vai ter dificuldade em acreditar, mas é assim: um bom número de meus colegas psicanalistas achará estranho que, nestas cartas, eu fale de psicoterapia e de psicanálise como se fossem parentes próximos. Aliás, eles julgarão curioso que um psicanalista escreva "Cartas a um jovem terapeuta".

Em princípio, eles certamente reconhecem que a psicanálise é a matriz mais importante de qualquer terapia que opere com as motivações conscientes e inconscientes de quem sofre. Mas não aceitam de jeito nenhum que a psicanálise seja uma psicoterapia; recusam a ideia de que o psicanalista se proponha a curar, de uma maneira ou de outra, o sofrimento de seus pacientes.

Na origem dessa recusa, que é, à primeira vista, um pouco surpreendente, há algumas reservas bem justificadas quanto aos efeitos da vontade e da pressa de curar. Essas reservas são úteis para o psicoterapeuta.

Freud, por exemplo, recomendava que os psicanalistas não tivessem pressa de curar.

Por quê?

Em muitos casos, o paciente nos consulta por um problema bem definido: um medo específico, uma ejaculação precoce, um pensamento obsessivo ou mesmo uma encruzilhada da vida em que lhe é difícil tomar uma decisão. Às vezes, aliás, ele já pensou bastante no assunto e nos dá sua própria explicação para o que lhe acontece.

Se o terapeuta estiver com pressa de agir, acreditará que a queixa apresentada (com a explicação que a acompanha) diz mesmo o essencial do que atormenta o paciente. E tentará imediatamente combater o sintoma ou ajudar na solução do dilema.

Neste caso, quase sempre, o sintoma e o dilema apenas se deslocarão, migrarão alhures, pois o sofrimento psíquico é como a massinha de modelar de nossa infância; você não a quer num determinado quartinho da casa de boneca, empurra com força, consegue desloca-la, mas ela não sumiu, apenas se insinuou pelas frestas e reaparece no quarto ao lado.

Um exemplo. Nos últimos anos, atendi pacientes brasileiros que viviam em Nova York. Muitos vinham me ver com um problema "só": queriam decidir se voltariam para casa ou ficariam nos Estados Unidos. Chegavam com verdadeiras listas de argumentos contrapostos que acabavam num empate que os imobilizava. Também estavam com pressa: renovo o visto ou não renovo? E o contrato de aluguel, que acaba daqui a seis meses?

Era grande a tentação de tomá-los ao pé da letra e, ajudá-los a decidir, pesando de novo os argumentos , acrescentando outros que, quem sabe, eles não tivessem contemplado e, sobretudo, jogando na balança o peso de um conselho que, justo ou errado, teria a vantagem de tirá-los de uma hesitação excruciante.

Claro, escutava com calma a exposição dos dilemas e de suas razões, mas me guardava da pressa. À força de perguntas, encorajava-os a voltar no tempo. Não era fácil, pois a reação imediata era de impaciência: "Tudo bem, vou falar daquela viagem ao Canadá quando era criança, tudo isso é bem bonito e interessante, mas eu devo decidir agora, você entende?".

Ora, quase sem exceções, o dilema do momento, por mais imperativo e efetivo que fosse, era o herdeiro de conflitos mais antigos, que, quase sempre, tinham sido ilusoriamente resolvidos pela própria saída do Brasil. Era a necessidade de realizar um desejo fracassado dos pais (impressionante quantas crianças nascidas ou concebidas durante o doutorado do pai ou da mãe nos Estados Unidos se perguntam um dia por que diabo acabaram emigrando). Era a necessidade de repetir o gesto mítico do ancestral que foi embora de algum país europeu para o Brasil (maneira de reivindicar para si a suprema autoridade simbólica da família, mas a que preço?). Eram as mil faces do eterno conflito de qualquer adolescente tardio, dividido entre o desejo paterno de que ele dê prova de sua autonomia e o desejo (também paterno) de que ele fique perto de casa, no abraço quente dos seus . Havia filhas que precisavam demonstrar coragem e autonomias muito "machas", para competir com os irmãos; caçulas que sonhavam em ser o filho pródigo da parábola; filhos mais velhos que só se sentiriam legítimos se conquistassem sua primogenitura na marra. Havia sujeitos só capazes de amar e ser amados à distância. E por aí vai.

Cartas a um jovem terapeutaWhere stories live. Discover now