2 - QUATRO BILHETES

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BILHETE 1

Caro amigo, recebi, sim, seu bilhete. Gostei da provocação. Lida a minha primeira carta, você me pergunta se, então, não haveria nenhum "desvio" (apreciei as aspas) que impediria que um sujeito se tornasse psicoterapeuta e acrescenta: "Poderia um travesti ser psicoterapeuta ou psicanalista? E você iria num ou numa terapeuta travesti?'.

Pois é, eu escolheria um analista em que tivesse confiança. As razões dessa confiança seriam provavelmente imponderáveis e, eventualmente, irrisórias: desde a recomendação de um amigo até a decoração do consultório, passando por uma contribuição decisiva do terapeuta à última enciclopédia de bridge ou por algo que ele ou ela disse ou escreveu em matéria de psicanálise.

De qualquer forma, quando escolhi meu analista, não me lembro de ter pensado que escolhia um analista heterossexual. Suas fantasias e preferências sexuais não o definiam, eram irrelevantes aos meus olhos.

A coisa seria diferente na escolha de um analista travesti? Sim e não.

Escolher um (ou uma) analista travesti teria um significado muito especial para quem compartilha com a cultura dominante a atitude seguinte: geralmente, pensamos que um sujeito que tenha e assuma uma preferência sexual excêntrica (digamos assim) seja necessariamente um sujeito que só pensa nisso, um "tarado, ou seja, um sujeito que se definiria exclusiva mente por seu desejo sexual. Essa convicção é sempre fruto de alguma repressão. Funciona assim: se reprimo minhas fantasias (por mínimas que sejam) de experimentar os prazeres que imagino sejam reservados ao outro sexo, quem parece viver essas fantasias (o travesti, no caso) me aparecerá como o símbolo vivente da lubricidade. Claro, trata-se somente da lubricidade que não me autorizo ter. Pois, de fato, na maioria das vezes, os travestis são mais preocupados em definir sua identidade do que afobados de gozar como míticos hermafroditas.

Em suma, se você imagina que qualquer travesti é um ser que conhece os prazeres de ambos os sexos e é afoito por ambos, talvez um travesti não seja para você o terapeuta ideal. A menos que você não queira justamente um terapeuta ou analista que lhe apareça de imediato como depositário de um extraordinário saber sobre o sexo. Nesse caso, por que não?

Por outro lado, se você não caminha com a cultura dominante, ou seja, não transforma uma preferência excêntrica numa "tara" sexual, um terapeuta ou analista travesti não será, para você, muito diferente de um terapeuta ou analista de terno ou tailleur Armani.

Agora, não sei se há analistas ou terapeutas travestis. Portanto, não adianta me pedir telefone e endereço do consultório.

BILHETE 2

Gosto disso, você é persistente e agora pergunta: "E um pedófilo, poderia ser terapeuta ou analista? Você quer que eu estabeleça um limite, ou seja, que coloque alguma prática ou fantasia sexuais no campo de uma anormalidade que tornasse por si só impossível o exercício da psicoterapia ou da análise. Por isso, você recorre a uma preferência sexual que é, além de ilegal, repulsiva, pois há ótimas razões, em nossa cultura, para que a infância seja protegida do desejo sexual dos adultos.

Mas disso, em princípio, cuida a nossa polícia.

A objeção à ideia de um terapeuta pedófilo existe, mas é de outra natureza. A fantasia do pedófilo é propor ou impor seus desejos a um sujeito que mal entende o que está sendo feito com ele e com seu corpo. É uma fantasia de domínio e sobretudo de domínio pelo saber. É a história (verídica) daquele padre americano que pedia sexo oral explicando a seu coroinha que era uma forma de santa comunhão.

Não é difícil entender que essa fantasia não é compatível com o exercício da psicoterapia ou da análise.

Claro, no começo de uma terapia ou análise, o paciente sempre supõe que seu terapeuta saiba muito mais do que ele, sobretudo em matéria de desejo e de sexo. Justamente, espera-se de uma terapia que ela não transforme essa suposição numa dependência crônica. Ora, é exatamente o que acontecerá se o terapeuta se servir da suposição inicial do paciente para realizar sua própria fantasia sexual, ou seja, se ele, propriamente, encontrar seu gozo na suposta supremacia de seu saber. E, se o terapeuta for pedófilo, a tentação será grande.

Cartas a um jovem terapeutaWhere stories live. Discover now