Capítulo 4

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Noite de 03 de janeiro de 2012

Camille

Seja bem vinda de volta amor.

O cartaz estava colado na parede em da escada que levava aos quartos. As letras eram de um rosa vivo e havia muito glitter espalhado pela cartolina, coisa que presumi ser obra de Cristine.

Era estranho ver a família toda reunida, não que eu considerasse a nova esposa do meu pai parte da nossa família, mas ela era legal apesar de ter a idade da minha irmã mais velha. O pior era ver a pena no rosto e lágrimas nos olhos da minha própria família, com exceção de Cristine que não sabia o que era isso, todos me olhavam como se eu fosse um gatinho abandonado. Tudo isso só me lembrava do que havia acontecido, do que eu havia perdido e do que eu havia ganhado.

Uma costela fraturada, 90% da audição perdida, múltiplos hematomas, estresse pós-traumático.

30 dias no hospital não haviam sido o suficiente para me autoflagelar.

Minha irmã mais nova, Cristine, me abraçou relutante e me entregou um papel escrito: -Nós te amamos Camille, estávamos com saudade. Mais uma vez cheio de glitter.

Peguei Cristine no colo, soltando um leve gemido de dor, e beijei seu rosto, feliz por sua ignorância de criança. Meu pai tirou Cristine de mim delicadamente, com medo de me tocar como se eu tivesse com alguma doença infecciosa. Perguntou se eu queria água, respondi que não.

Eu estava brava e triste ao mesmo tempo. Mas sabia que eles estavam fazendo o melhor que podiam para me fazer sentir bem. Minha mãe havia comprados livros sobre libras, e minhas irmãs haviam baixado várias vídeo aulas de leitura labial e língua de sinais brasileira para me ajudar.

Eles não tinham culpa por eu me sentir um lixo. Me senti assim no momento em que aquele homem me jogou no chão e tinha quase certeza de que nunca mais iria me recuperar.

-Preciso de um tempo. – Tentei falar e apesar de sentir a garganta raspar, não consegui saber se eles ouviram ou entenderam.

Quando subi para meu quarto, ninguém me seguiu e eu fiquei grata por isso.

Os meus dias no hospital foram um saco, e aquele não tinha sido diferente.

Os policias foram me visitar mais uma vez me perguntando se eu havia me lembrado de algum detalhe que pudesse ajudar na investigação.

-Ela não perdeu a memória oficial, ela já te disse tudo que sabia. – Foi o que minha mãe respondeu. Ela ficou sentada na poltrona o tempo todo. Pelo menos eu acordava e dormia e ela ainda estava ali. De vestido branco e coque perfeito. Me protegia como uma mamãe urso protegendo o filhote e eu era grata por isso. Mas nem minha mãe podia me proteger das fofocas das enfermeiras ou dos olhares de pena e curiosidade dos pacientes.

—Um dos policias disse que se ela não estivesse de vestido vermelho, talvez nada disso tivesse acontecido. — Sussurrou uma das enfermeiras logo quando cheguei no hospital, três dias depois de ter acordado do coma. Minha mãe saiu para comprar café e pagou um extra para duas novatas me fazerem companhia. Elas sabiam que eu tinha ficado surda, mas não sabiam que minha irmã me ajudava a aprender leitura labial.

—Ouvi dizer que ela estava bêbada... — Sussurrou a outra de volta. Não me incomodei em continuar prestando atenção na conversa. Para mim, qualquer mulher que procurasse desculpas para justificar uma agressão se tornava tão ruim quanto o próprio agressor.

Contei a minha irmã Caroline o que eu tinha acontecido quando ela veio me visitar naquela noite e ela apenas me abraçou.

"Não deixe que aquelas idiotas a fazerem você pensar por nenhum momento que a culpa disso foi sua. – ela havia escrito em uma folha de caderno. – Não dê ouvidos nem mesmo aos policiais! Para eles é mais fácil culpar um objeto do que admitir que o verdadeiro responsável ainda está solto por ai."

Talvez minha irmã tivesse razão, mas alguém tinha que levar a culpa e por que não eu?

A caminhada da calçada até o carro havia sido mais difícil que todos os dias, em que fui obrigada a comer canja de galinha, juntos. Notícias ruins correm com o vento então a porta do Hospital de Base estava lotada de homens e mulheres com câmeras de vídeo, foto e microfones.

"Eles encontraram o suspeito?"

" Ela está gravida?"

" Qual roupa ela vestia?"

Porém nada se comparava á andar de carro. Os vidros abertos me faziam tremer pois parecia que cada carro que passava era o dele, e que ele estava me observando. As janelas fechadas me davam falta de ar. O zumbido dos carros no meu ouvido era insuportável e o silencio da rodovia tranquila era aterrorizante.

Era como se o mundo não fosse mais o meu lugar.

Quando entrei no meu quarto pela primeira vez parecia errado, embora estivesse tudo organizado e limpo. As paredes lilás já não me agradavam mais e o espaço em que eu havia me refugiado á vida inteira agora não me parecia tão seguro.

Eu não queria ficar com minha família, mas ao mesmo tempo me sentia solitária e cada passo me lembrava o que acontecia a uma garota quando ela ficava sozinha demais.

Uma costela fraturada, 90% da audição perdida, múltiplos hematomas, estresse pós-traumático.

A primeira coisa que eu fiz foi pegar uma cartolina preta no quarto de desenhos de minha irmã e cola-la nos vidros da minha janela. Além da sensação de estar sendo constantemente observada, eu não podia deixar, seja lá quem fosse, que tivesse me atacado ver o estrago que ele tinha feito.

Depois peguei uma mala e joguei tudo que me lembrava do meu antigo eu dentro. Cada peça de roupa, cada par de meia, cada brinco e maquiagem, sapato, esmalte e perfumes foram enfiados em uma mala preta e jogados do lado de fora da casa.

Era minha forma de dar meus pêsames á uma garota que havia morrido deitada no chão da calçada em uma madrugada fria.

O amor (não) doí.Where stories live. Discover now