O sol se punha longe, na longa planície de campos de gado. Ventos e raios no horizonte prometiam chuva para a noite. Aimara se atentou para isso. Sua enorme barriga em um corpo esquelético denunciava uma gravidez adiantada. No fogo algumas raízes eram assadas. Duas meninas sujas, cabelos emaranhados e tão esqueléticas quanto Aimara estavam agachadas perto do fogo. Elas olhavam a mãe, que estava na porta. A casa, se é que aquilo pudesse ser chamada de casa, se resumia a um cômodo erguido com paus e coberto com capim. Se chovesse eles se molhariam muito.
Mas não era isso o que preocupava Aimara. O que a deixava angustiada eram a dor e as contrações, cada vez mais intensas, e perto uma das outras. Dessa noite não passaria. Com certeza a criança nasceria durante a noite. E o que ela poderia fazer?
Eles, a família, que se resumia no pai, ela e duas meninas, viviam escondidos no meio daquele pequeno resto de mato, no fundo da fazenda. Não tinham como chamar ninguém para ajudá-la, porque os outros, também como eles tentavam se manter escondidos e invisíveis daqueles que os cercavam. O jeito era entregar tudo a Deus e deixar que ele conduzisse como ele quisesse. E ela então entoou baixinho, bem baixinho, um canto/reza ritual de seu povo. Canto que ela desistira de ensinar às filhas. Para quê? Ainda que elas iriam aprendessem, nunca poderiam usar.
Ao ouvir ela entoando o canto/reza, ritual arraigado no coração e corpo, o marido lhe fulmina com os olhos. Ele também está agachado perto do fogo. Suas vestes não passam de trapos imundos, lançados sobre seu corpo. Os pés descalços. Tão magro quanto as mulheres. Moreno, alto, cabelo que poderia ser liso, não fosse o estado de emaranhado e talvez de piolhos e outras pragas que lhe consumia o resto de sangue e energia.
Ele tinha razão em olhar para ela com desaprovação, pela reza entoada. Só ele e ela sabiam o quanto já tinham sofrido, o que já tinham passado, e o quanto ainda poderiam sofrer, se fossem descobertos ali. Restavam poucos de seu povo agora. Eram ainda muitos quando foram forçados a migrar para aquela região fugindo de seu território tradicional, também invadido por essa praga que chegou, surgindo sabe lá de onde. Seres como eles, mas mais brancos, com estranhas vestimentas e com armas que queimavam e matavam instantaneamente.
Aimara não se lembra de quando ouviu deles a primeira vez, mas sabe que foi há algum tempo. Primeiro só como lendas. Depois a terrível realidade. Iam chegando, invadindo tudo, expulsando os nativos do lugar e matando. Matavam todos que se pusessem em seus caminhos. E nisso eles sabiam ser muito cruéis. Era o que as histórias davam conta no princípio.
Mas depois ela presenciou eles chegando. E eles, a sua etnia, o seu grupo, o povo conhecido como Oti, ainda moravam em seus territórios. Ainda tinham fartura de caça e coleta. Tinham seus deuses e suas rezas. Eram gordos e bonitos. Pelo menos no modo de ver deles. Até o dia em que eles aparecerem, Aimara não sabia muito como era isso da barriga queimar de fome. É certo que não era todo dia que eles tinham carne de caça. Mas quase todos dias tinham. E tinha também as frutas que podiam colher livremente na floresta.
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Mais um clarão... um raio...
Mais uma contração...
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Os últimos de seu povo
Ficção HistóricaA família já não tinha mais nada. Sequer algo para comer. Estavam encurralados e escondidos nos fundos de uma, agora, fazenda de gado. E tinham muito menor valor que uma cabeça de gado. Não tinham para onde ir, ou a quem recorrer. E a mulher est...