2. Manoel

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Seu nome era Manoel. Ele era o marido, pai das duas meninas magras, e do bebê que ainda se encontrava na barriga da mãe, prestes dar as caras a esse mundo tão cruel para com eles.

Manoel.... Seria esse mesmo o seu nome? Ele sabia que não. Seu verdadeiro nome era outro, dado pelos pais ao nascer, mas ele não gostava de se lembrar dele. Era chamado pelo nome indígena nos tempos em que - ele agora considerava assim - foram felizes, e tiveram um pouco de paz.

Bom, agora ele era Manoel. Pelo menos era assim chamado por uns poucos brancos com quem ele se relacionava. Era difícil entender o que diziam os brancos e, talvez por isso, também era difícil confiar neles. Raça traiçoeira, enganosa, má até as últimas consequências.

Os conheceu quando ainda era pequeno. Na época, ele morava com os pais, as duas irmãs e três irmãos mais novos. Uma escadinha de crianças. A mãe tinha um filho a cada ano. Não tinha como evitar. E também não tinham porque fazê-lo. Naqueles tempos as crianças não eram um peso. Pelo menos não como eram agora, para ele, as duas meninas que o encaravam respirando profundamente em determinados momentos. E ele sabia, era de fome. Ele também tinha fome. Muita fome.

Manoel se lembrou da sua época de criança. Moravam uma pequena choça na beira do rio. Outros de seu povo também moravam por ali, em pequenas barracas de capim como eles. Habitavam uma das margens do rio. Ali era o território deles. Aquele campo aberto.

Do outro lado do rio, diziam os adultos na época, era território do povo Kaiowá, que diferente deles, gostava das matas, usavam canoas, plantavam. Seu povo, os Oti, não. Só caçavam e pescavam. Também não faziam cerâmica, nem teciam suas vestes, como os outros. Mas, ainda que a caça fosse pouca, sendo constituída, basicamente, de pequenos animais como tatu, preás, cutias, larvas, ele não se lembrava de ter passado fome naquela época. Mas agora ela era a sua companheira constante. Não somente dele. Mas também da mulher e das duas meninas, que continuavam lhe encarando silenciosas. Só aqueles suspiros fundos, de quando em quando, denunciavam alguma comunicação da parte delas. Mas nem elas se davam conta dos suspiros. É que elas tentavam puxar o ar de maneira mais forte para enganar a fome. Mas não tinham consciência disso. O pai, no entanto, tinha. Porque ele também fazia isso.

Um movimento da mulher perto da porta, e um leve gemido, o trouxe de volta à realidade. Ele sabia que ela estava tendo contrações. Compreendia que ela poderia dar à luz a qualquer momento. E talvez isso pudesse ser trágico, devido ao estado de fome e falta de energia do corpo dela. O que ela tinha comido nos últimos dias? Algumas larvas? Algumas folhas e raízes comestíveis?

Não muito longe tinha muito daqueles animais que seu povo caçara excessivamente nos últimos tempos. Os animais grandes, que viviam em bando, de carne saborosa e que um único animal dava para alimentar eles, e outras várias famílias, por muitos dias.

No entanto, e ele sabia muito bem disso, aqueles animais tinham sido a desgraça deles. Os animais começaram a aparecer de repente. Muitos deles, todos juntos, e de pelo menos duas raças diferentes. Se alimentavam do capim que cobria o campo e que se perdia no horizonte. Eram animais relativamente dóceis, não fugiam deles. Provavelmente tinham vindo em busca de alimento. Gostavam demais daquele capim. Talvez fossem embora depois que o alimento ali escasseasse. E foi então que os do seu povo passaram a caçá-los.

Por um tempo tiveram abundância, como nunca antes acontecera. Faziam festas, se divertiam, as crianças brincavam, riam. Tempo abençoado pelos deuses. Mas daí eles começaram a perceber a presença deles, dos brancos. Seres semelhantes a eles, mas que usavam mais vestes, ainda, que os Kaiowá da outra margem do rio e os botocudos, os bravios habitantes das matas ao sul de seu território.

Quando se deram conta a tragédia já tinha se instaurado. A relação dos homens brancos com os animais, que tomaram conta de seu território, era muito mais próxima do que eles podiam entender. Era como se eles fossem os donos, os senhores daqueles animais. E quando eles perceberam que os Oti caçavam os Seus animais, eles passaram a caçar os Oti.

Manoel estremeceu. Sua mulher olhou para ele e também as crianças.

- Que foi, homem? - a mulher perguntou, quase ofegante. Com certeza ela estava ocultando a dor que sentia.

- Nada, ora. - Foi tudo que ele disse.

Seus pensamentos, no entanto, o levaram para um dia, quando tinha, talvez, uns dez anos. Era madrugada, muitos ainda dormiam e uma cerração cobria todo o horizonte. Um silêncio estranho dominava tudo. Então, um a um, eles foram a aparecendo, surgindo em meio à neblina. Eles... os brancos... O silêncio sendo quebrado pelo compasso dos passos dos animais que eles montavam e que era a melhor caça para os Oti. Eram muitos deles, mais de cinquenta homens.

Manoel não entendera na época. Mas estrondos foram sucedendo estrondos. E os do seu povo caíam com gritos de dor. O sangue borbulhando em buracos formados em seus corpos.

- Corre, filho, foge. - foi a última coisa que ouviu do pai, antes dele também tombar morto.

Uma algazarra se formou. A mãe agarrou os menores e os arrastou em direção à mata. Ele correu atrás. Muitos outros do seu povo, quando finalmente se deram conta do que se passava, fugiram em uma confusão de pessoas, em uma corrida desabalada. Somente para serem cercados, encurralados e, também, mortos. Uma carnificida. Poucos daquela aldeia escaparam naquele dia. Manoel foi um deles. Ele se escondeu no lugar que se tornaria sua morada e daqueles, que como ele, escaparam: as touceiras de samambaias na margem do rio. Mas suas duas irmãs pequenas e mais algumas crianças foram levadas prisioneiras. Ele nunca mais as viu.

Naquela tarde, se ocultando na vegetação, ele voltou ao local. Somente para ver todo o seu povo em um enorme monte de mortos. Uns duzentos, ou mais, talvez. Ele nunca teria certeza de quantos corpos havia ali. Ele nunca soubera, antes, quantos eram.

Mais um suspiro fundo das filhas. Manoel as olhou e tomou uma decisão desesperada. Tinha que tentar conseguir algum alimento para a esposa e filhas. Pegou o arco e as flechas e saiu ainda ouvindo a esposa:

- Onde você vai, homem? Você está louco? Eles estão por aí tudo. Se te verem, te matarão. E depois nos caçarão a todos aqui.

Mas ele já estava se afastando.

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Os últimos de seu povoOnde histórias criam vida. Descubra agora