— Isso é sangue? — indagou Evan, tentando impedir que sua voz saísse tão tremula quanto suas mãos.
O homem no outro lado da janela o encarava com olhos sombrios, o que o fez lembrar-se da forma com que seu pai o olhara mais cedo.
Não esqueça de que sou o seu pai, havia dito.
Deus sabe o quanto ele adoraria esquecer.
— Sim. Ele abriu a própria barriga acredita? — A enfermeira parecia entusiasmada ao dizer aquilo. — Uma médica está vindo de fora para avaliar o caso.
Fechou a janelinha, e pôs-se a tossir enquanto guiava Evan pelo corredor tenebroso. Bem ali, no final da passagem, havia umas três lâmpadas que necessitavam ser trocadas. O rapaz deu uma olhadela no teto desfigurado e quando voltou a olhar para enfermeira ela estava outra vez com o cigarro na boca, novamente sofrendo por não poder acendê-lo. Colocou-o entre os dedos e voltou a falar:
— Espero que tudo isso não tenha mexido com a sua cabeça, afinal, o pior vem agora.
Evan limpou a garganta e enfiou as mãos nos bolsos do jaleco.
— É preciso bem mais do que uma lenda boba para me assustar.
— Ótimo. O doutor Gustavo já deve ter mencionado algo sobre a Alicia, ele adora assustar os internos com o pobre quadro dessa criança.
A menção do seu pai o fez sentir-se daquele jeito outra vez. Sem pele. Sem jeito.
— Acho que sim, algo sobre comer a própria carne, mas não achei que estive falando sério.
— Para a sua infelicidade, ele estava.
Dobraram a direita e se depararam com uma porta entreaberta. Dentro do cômodo, dois corpulentos enfermeiros seguravam uma menininha enquanto um deles tentava administrar a medicação. A criança tinha a pele pálida, e parecia dopada de tão comportada, ainda assim, os enfermeiros a seguravam de forma rígida.
— Isso é mesmo necessário? — indagou Evan sem conseguir disfarçar o incomodo.
Beatriz jogou o cigarro babado em uma lixeira ao lado e então mostrou o seu antebraço ao jovem. Uma marca roxa em forma de dentes se destacava próximo ao pulso.
— Dermatofagia? — pronunciou Evan mais para si mesmo que para enfermeira. Voltou a olhar para criança deitada na cama, os pequenos olhos vidrados em algo no teto enquanto o enfermeiro a fazia engolir um pouco de água.
— Em um quadro bem agudo — concordou Beatriz. — Sabe o porquê chamam as pessoas que sofrem dessa doença de "Lobos Mordedores"?
— Não — admitiu.
— Algo sobre os lobos ficarem estressados quando são submetidos à prisão. Eles rosnam, se debatem e por fim acabam mordendo a si próprios como forma de alivio. A Alicia está presa a algo, e não é a este sanatório, afinal, quando chegou aqui suas mãos já estavam em estado de putrefação de tão grave o caso, além disso, ela havia comido metade da própria língua e agora mal consegue falar. O que quer que a esteja prendendo está ligado ao seu passado.
— Algum histórico de trauma ou violência?
— Não até onde eu sei. A mãe dela é um amor de pessoa e sempre me trás aqueles chocolates quando vem visitar a filha. Ela diz que é bom para fumantes, para os que estão querendo parar de fumar ao menos. O que quero dizer é que aquela mulher jamais seria capaz de tocar em um fio de cabelo desta menina.
Por alguma razão, por um curto período, Evan pode vislumbrar o rosto vívido de sua própria mãe. Os enfermeiros deixaram o cômodo, entregaram o prontuário a Beatriz e seguiram pelo corredor. Haviam colocado uma espécie de mordaça na menina de cabelos pretos, que agora olhava em direção à janela.
— Foi a única forma que encontramos de evitar mais lesões — explicou Beatriz ao mesmo tempo em que um som metálico ressoou do bolso do seu jaleco, ela arrancou o celular de lá e deu uma admirada no nome que brilhava na tela. — Só um minutinho — pediu, e depois sumiu corredor adentro.
Receoso, Evan entrou no pequeno quarto e foi em direção à cama, seu coração partindo aos poucos.
— Alicia né? — sussurrou.
A menina olhou vagarosamente em sua direção, havia lágrimas escorrendo do seu rosto. A mordaça parecia apertada e nem de perto a melhor forma de evitar mais lesões. O médico aproximou-se ainda mais e tocou de leve o rosto da menina. Seu olhar era suplicante, pedia ajuda, e ele não suportou ver aquilo por mais um segundo. Acautelando para não machucá-la, retirou a mordaça e a colocou na mesinha ao lado.
A menina então abriu a boca para falar algo, mas parecia ter dificuldades.
Será que queria pedir obrigado?
Não.
Essas foram as suas palavras:
— Você vai morrer aqui dentro.
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Anamélia
TerrorTestes em humanos. Séries de tortura e amputações. Um médico louco e objetivos monstruosos. O antigo Sanatório Palatino viu acontecer em seus porões cenas aterradoras, mortes lentas e desumanas. Considerado um cemitério de pessoas vivas, o Palatino...