13. Armistício

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Naquelas duas semanas de espera, Milton Schmidt viveu um verdadeiro armistício. Nem parecia estar envolvido em trama de tal envergadura, e tão logo não aguentou ficar enfurnado no barraco, passou a desfilar pela comunidade de Butanópolis integrando-se à paisagem urbana. Fez algumas amizades e parte do seu orçamento foi gasto no Boteco do Valmir onde seguidamente comprava cervejas ou Coca-Cola. De certa forma tal desprendimento era mais um dos indícios de que ele não possuía nenhum plano B, e estava certo de que em breve ganharia na loteria.

Porém não se pode dizer que ele desligara-se totalmente do seu plano. Vinha acompanhando os passos do governo através das notícias na internet. Não conseguira antever nenhuma outra nuance que indicasse que seus "amigos" estivessem trabalhando por ele. Todavia, a loteria seguia acumulando, enquanto o governo lidava com as consequências da morte do Juiz da Corte Máxima, com a crise, com a segurança nacional em frangalhos, além de articular no Congresso uma série de projetos que na prática reverteriam posicionamentos ideológicos recentes.

Para ser sincero, enquanto ainda batia cartão na Companhia alô!, Milton Schmidt ainda que silenciosamente mostrava-se deveras preocupado com as reformas que vinham sendo discutidas pelos políticos. Crescera numa família que acostumara-se com carteira assinada e salário no fim de mês, e ele então vinha observando que tudo isto estava para cair por terra, pois pelo que os trabalhadores comentavam, as ideias dos políticos era precarizar as condições de trabalho para que a turma do dinheiro faturasse mais. No entanto, lá, na favela, ele vivia talvez como os turistas gringos que se fingiam de pobre, mas que sabiam que não lhes faltaria grana. Milton Schmidt já se considerava um homem rico, por isso desfilava com certa superioridade entre as vielas e becos do morro. Era um novo homem. Estava confiante.

Sua confiança era tanta que sequer assustou-se quando os meninos que controlavam o lugar lhe fizeram uma visita para dar um confere no branquelo estranho que estava por ali.

"Estou de boa, pessoal. Vou ficar um tempo por aqui. Sabe como é, a crise e tal."

"Cê não tá de trairagem, mano? Tá bicando nóis, por acaso?"

"Relaxa, cara."

E seguiram por uns bons trinta minutos de desconfiança até que Milton mandou subir alguns engradados de latinha de cerveja e fizeram uma grande festa com o anfitrião lhes garantido que a senhora que lhe alugara a casa recomendara-o muito que não se metesse nas atividades deles. "O que precisarem de mim, é só gritar." ele disse meio embriagado.

Sem dúvida alguma o período que Milton passara em call centers ajudou a desenvolver a conversa com os rapazes, e logo ele não era mais visto com tanta desconfiança pelos caras que geralmente andavam armados pela comunidade. Acostumara-se tanto com os costumes do lugar que nem mesmo perdia o sono com a agitação noturna e quando vez ou outra os novos amigos subiram até o topo com algum devedor caguete. Era quase um nativo.

Mas embora a excelente adaptação e o quase esquecimento de seus planos principais, isso não significa que ele não sofrera com sustos em sua estadia em Butanópolis. Certa noite ao som de sirenes e tiros, escondeu-se sob a cama com a certeza de que eram os homens do presidente que tinham lhe descoberto o paradeiro. Por uma hora a paranoia voltara a ansiar seus pensamentos, a ponto de novamente ele ouvir megafones com seu nome. "não vou sair. Não vou sair. Não vou sair." dizia baixo e entredentes numa vã tentativa de proteger-se caso suas desconfianças fossem concretas. Porém, logo a algazarra cessou, os traficantes espalharam-se pelo labirinto de tijolos de madeira e a polícia estranhamente poupara seu barraco dos pontapés e de uma invasão, o que salvou Milton de qualquer confusão, afinal, para a polícia, no morro qualquer moleque é do movimento.

Mas de certa forma a confusão foi propícia para Milton Schmidt. Lembrou-o de que precisava manter o foco, de que estava no meio de uma trama muito maior que a comunidade e de que ele precisava manter-se lúcido, sem distrações. Assim, Milton conseguiu levar os dias seguintes sem perder de vista seu projeto principal enquanto a Big-Loto seguia acumulando. Até que numa quinta-feira ao acordar perto do meio-dia ligou seu computador e sentiu uma estranha vibração tomar-lhe o corpo todo. Em destaque, o título da matéria chamava atenção. "Big-Loto acumula novamente e deverá sortear prêmio milionário de mais de Cem Milhões".

Estava acontecendo. Seu amigo, o Presidente da República, vinha mantendo a palavra no contrato bilateral que firmaram por telefone. Não tem como ser coincidência, pensava, ainda incrédulo. No fundo, e talvez nem tão lá no fundo assim, Milton carregava uma série de frustrações que o deixavam sempre com pulgas atrás das orelhas. Era naturalmente um pessimista e duvidava um bocado daquela coisa de o universo conspirar a seu favor que certa vez vira num documentário. Remoeu estas frustrações ao longo da quinta-feira, mas já na sexta, certo de que tudo fazia parte dos planos, desceu da comunidade para ir até uma lotérica.

Milton Schmidt entregou o volante para a moça levemente obesa do outro lado do balcão da Casa Lotérica. Recebeu um olhar curioso, pois aquelas não eram dezenas que se visse tão facilmente. Na verdade, em frações de segundos, a moça fizera um backup de lembranças e era capaz de afirmar de que nunca vira um jogo com aqueles números.

"Mais alguma coisa senhor?"

"Só isso" foi a resposta dele que entregou à caixa Três Reais com Cinquenta Centavos. "Se é para ter sorte, uma aposta só serve" completou ao receber o bilhete da aposta. Despediu-se da atendente com um piscar maroto "sonhei com esses números".

***

Naquela manhã Milton saíra da lotérica com a certeza de que nada mais voltaria a ser como antes. Olhou com certa reverência para os números impressos termoestaticamente no papel. Já podia sentir o poder do dinheiro, a capacidade de poder planejar, de realizar todos os seus sonhos e desejos. Ele iria à desforra. Adeus pobreza. Adeus frustrações. De tão feliz que estava, naquela sexta-feira resolveu almoçar num destes restaurantes caros. Churrasco dizia a placa.

Voltou para a comunidade com a aposta comichando dentro do bolso de sua calça jeans. Tinha noção que meio sorria sozinho, algo meio tresloucado. Contudo não sabia como fazer para parar de rir daquela forma sem sentido. Foi enquanto pensava nisso e subia pelo morro que talvez tenha cometido o maior erro da sua jornada. E se diz talvez porque muitas coisas nessa vida trata-se apenas de ponto de vista, e como o que viera a acontecer naquele entroncamento de vielas iria mudar drasticamente a vida de Milton Schmidt, haverá sempre a divisão entre erro ou acerto.

Foi naquela tarde de sexta-feira, naquela encruzilhada de barracos que Milton Schmidt apaixonou-se perdidamente.

�Hp��~

Yellow BananasWhere stories live. Discover now