Dois

102 13 1
                                    

- E ai vamos? - Pergunta o Lucas ao meu lado enquanto fecho meu armário

- Vamos

- Isa, você já estava com o cabelo molhado? - Pergunta ele enquanto vamos até o carro. Sinto uma enorme necessidade de chorar, mas me contenho

- Estava - Minto tentando manter minha voz no tom normal

- Eu não reparei

- Eu percebi - Paramos enfrente ao carro dele e ele abre a porta para eu - Obrigada

Ele sorri e fecha a porta.

- Quer ouvir alguma coisa? - Pergunta ele se sentando ao meu lado e ligando o carro

- Não, gosto do silêncio

{...}

- Quer comer alguma coisa Isa? - Pergunta o Lucas quando chegamos em casa

- Não - Subo direto para o meu quarto

Jogo minhas coisas na cama e vou direto tomar banho

Ligo o chuveiro e sinto a água quente cair sobre o meu corpo. Encosto a cabeça na parede e fecho os olhos

- Querida está com fome? - Pergunta minha mãe na cozinha

- To mamãe - Deixo os brinquedos no chão da sala e vou correndo para a cozinha

- Querida não corra na cozinha, depois de comer você vai arrumar aqueles brinquedos

- Tá mamãe - Ela me pega no colo e me coloca na cadeirinha

- Eu te amo minha pequena - Ela passa a mão no meu cabelo e beija o mesmo

Abro os olhos e começo a chorar por lembrar de quando eu tinha dois anos, por me lembrar dos raros momentos em que eu não estava sofrendo

Pego uma lâmina que tenho escondida no box do banheiro e passo sobre minha barriga enquanto choro. Depois de cinco torturantes minutos saio do banheiro e vou me trocar

Visto meu habitual moletom cinza, uma calça jeans e um all star

Desço para a sala e encontro o Lucas assistindo Harry Potter pela milésima vez

- Oi Isa, quer assistir comigo? - Pergunta ele quando nota minha presença

- Já assisti mais de cinco vezes - Ele olha para mim e dá a língua - Que maduro, nem parece que tem dezessete anos

- Estou fazendo lasanha, vai comer comigo?

- Não estou sem fome - Ele pausa o filme e vem atrás de mim que estou indo para a cozinha

- Você não comeu na escola

- Claro que comi - Minto pegando um copo de água

- Claro que não, eu estava de olho, você nem estava no refeitório - Ele cruza os braços e olha sério para mim - Isa o que está acontecendo?

- Nada

- Isabella não minta para mim, está acontecendo alguma coisa sim e não é de hoje

- Lucas, olha eu apenas não tenho fome tudo bem?

- Você precisa comer

- Mas eu não quero

Passo por ele e subo para o meu quarto

Tranco a porta e me jogo na cama. Não gosto de ficar tendo essas "discussões" com o Lucas, ele é a única pessoa com quem eu me dou bem, eu não quero perde-lo, mas ele teima em querer que eu coma

Abro a porta do quarto e olho do topo da escada se o Lucas está na sala

Desço quando percebo que está vazia. Passo de mansinho pela sala e saio de casa

Sinto o ar gelado do fim da tarde no meu rosto

Caminho calmamente pelos becos indo em direção ao "meu" prédio. O "meu" prédio é um prédio de trinta e oito andares abandonado que eu encontrei nas minhas fugas para andar quando tinha sete anos, desde então todo dia eu saio escondido de casa, subo até o topo do prédio, me sento no peitoril e tento criar coragem para pular

Olho para o prédio e entro. Subo as escadas correndo e chego ao topo. Me sento no peitoril e fico olhando as pessoas lá embaixo, todas vivendo suas vidas como se nada estivesse errado, como se o mundo não estivesse perdido, mas ele está.

O mundo está perdido, a humanidade está perdida e continuará enquanto existir pessoas como a Ariana e suas capachos ou como o monstro que acabou com a minha vida e com a vida da Kate

Enquanto o mundo estiver lotado de pessoas que são felizes e satisfeitas fazendo outras pessoas sofrerem o nosso mundo estará perdido.

Balanço a cabeça afastando esses pensamentos e volto a olhar para baixo, para o chão. Consigo até me imaginar estirada lá embaixo, com sangue ao meu lado e vários curiosos, consigo imaginar as pessoas no meu velório

"Mas ela era tão jovem"

"Uma jovem tão amada e querida por todos, por que fez uma coisa dessas?"

"Eu gostava tanto dela"

"Ela era tão linda"

Consigo imaginar todos que me torturaram, todos que me humilharam, fingindo dor, fingindo que gostavam de mim, fingindo que me conheciam.

E consigo imaginar o meu irmão, consigo imaginar o Lucas jogado encima do meu caixão, sofrendo de verdade pela minha morte, desejando que eu estivesse ali, com ele, desejando que tudo tivesse sido diferente, desejando que ele pudesse ter me ajudado, porque é isso que ele mais quer, me ajudar, mesmo sem poder

Eu talvez ainda não tenha feito o que tanto desejo por ele, por saber da dor que ele iria sentir por minha causa ou talvez por medo, medo de acabar com a minha vida e lá na frente o destino ter me reservado algo melhor do que, o que estou vivendo agora

Mas um dia, um dia estarei ao lado da minha mãe, um dia matarei essa dor e todas as lembranças que me torturam, um dia eu serei livre, irei me libertar dos meus demônios. Um dia eu serei livre

Olho para o meu relógio de pulso e vejo que já é 19H40

Meu pai já deve ter chegado e vai falar um monte se me vê chegando agora

Desço do peitoril, limpo minha roupa e volto para a escada

Saio do prédio e ando calmamente até em casa. Assim que entro sou abordada pelo meu pai

- Onde você estava?

- Por ai - Respondo dando de ombros

- Isabella onde você estava?

- E o que isso importa? Eu estou em casa, não estou?

- Eu quero saber onde a minha filha anda

- Engraçado você não queria saber por onde eu andava quando a Kate estava viva, não é mesmo?

Ele fica pálido. Sempre quando eu toco no nome da Kate ele fica assim, não entendo por que.

- Isabella...

- Olha pai, não enche, por favor - Subo para o meu quarto e me tranco nele

Me jogo na cama do jeito que estou. Pego meu celular embaixo do travesseiro, meu fone no criado mudo e coloco para tocar "SuperCombo - Amianto" e durmo

De Quem é a Culpa?Onde histórias criam vida. Descubra agora