Rafaela, desviando-se do líquido viscoso e malcheiroso, chutou a caixinha para dentro do porão e bateu a porta com força. As batidas pararam de repente e Guilherme colocou a mão na cabeça, sentou-se em uma cadeira.
O rapaz olhou aquela gosma que se retraía para a porta do porão e sentiu suas têmporas latejando. Ele levantou, pegou uma vassoura e empurrou aquele líquido fedido e verde para dentro do porão, sem abrir a porta, apenas jogando tudo por baixo dela.
Rafaela abriu todas as portas dos armários, procurando alguma coisa e vasculhando todos os potes, abrindo todas as tampas.
— Onde está o sal? — perguntou ela, com a voz decidida e forte.
As sobrancelhas do rapaz se ergueram.
— Se lembra do que a Melissa disse? — respondeu – Demônios são em último caso.
— Se tem chance de ser, temos que estar preparados!
O rapaz bufou.
— O sal acabou, deve ter alguma coisa no porão.
Os dois, sem medo, entraram pela porta e ligaram a luz puxando uma cordinha. O porão era como um campo de voleibol, do mesmo tamanho. Era quase vazio, com a exceção de alguns móveis quebrados espalhados pelos cantos e uma caixinha centralizada na área.
Não havia sinal de líquido gosmento naquele lugar; e só chegando perto o suficiente da caixa que os dois perceberam um círculo de sal que a rodeava. O círculo não estava completo, estava quebrado em várias partes como se ratos ou baratas tivessem passado por cima dele.
Uma lâmpada de luz negra estava em cima de uma cristaleira velha e empoeirada. E atrás dessa cristaleira, um respingo de tinta vermelha que se diferenciava da cor do sangue por ser muito rosada.
Uma pequena janela fora construída quase encostada no teto, ela não tinha vidro, e sim grades e se não fosse por aquela lâmpada, aquela janela seria a única fonte de luz do lugar.
Guilherme olhou para seu relógio de pulso enquanto Rafaela procurava um pacote de sal nos armários; eram 06:30 da manhã. O rapaz pensou em seu pai, que já deveria estar abrindo a sua loja de armas.
— Eu tive uma ideia. É isso!
— O que foi? — disse a namorada, puxando um pacote cheio de sal.
— E se comprarmos balas de sal? Balas de revólver.
Rafaela semicerrou os olhos e respirou fundo.
— Vamos. — respondeu.
Guilherme subiu as escadas e olhou para ver se Rafa também estava, mas na verdade ela havia completado o círculo de sal em volta da caixa e depois acompanhou o rapaz.
Colocaram todos os animais junto de Furacão, repuseram suas respectivas rações e se despediram.
— Se algo acontecer — disse Gui à Furacão —, quebre a porta e fuja com Tigresa, Napoleão e Luna.
O cavalo relinchou. O rapaz não tinha muita certeza se o animal o entendera, mas mesmo assim sorriu.
Fecharam a porta, abriram a porta da garagem, entraram no carro e saíram para a estrada. Ninguém disse uma única palavra até chegarem á loja intitulada “Armas e Balas”, que já estava aberta.
Pedro, no balcão, viu o filho e a garota entrando e os cumprimentou, pediu o que o filho queria e ele respondeu que queria balas de sal para uma Magnum. O homem franziu as sobrancelhas e lhe entregou o que pediu.
Eles se despediram e Gui e Rafa saíram da loja com uma sacolinha.
Ao chegarem perto da casa, com o carro em baixa velocidade na Rua da Espada, viram todos os animais — Tigresa, Napoleão, Furacão e Luna — na porta da frente da casa.
O cachorro latia para a porta e o cavalo dava patadas violentas no chão. Rafaela abriu a garagem com o controle remoto e Gui entrou lá dentro com o carro. Os guardiões perceberam o carro e entraram pela garagem.
Guilherme observou-os pela janela do carro e um pingo de suor escorreu pela sua bochecha. O que teria acontecido dessa vez?
Rafaela foi a primeira a sair do carro, bateu a porta e correu rapidamente para a porta que ligava a garagem à sala. O rapaz tentava acalmar os animais, que corriam de um lado para o outro. Quando a garota entrou pela porta, soltou um grito desesperado e depois parou como se alguém tivesse coberto sua boca.
O rapaz e os guardiões correram para ver o que tinha acontecido, mas Rafaela estava bem, somente seu rosto se mesclava em uma expressão de confusão e medo.
Ela segurava em uma mão a carta de Ana Nogueira e na outra a mesma lâmpada de luz negra do porão. Guilherme deixou sua boca se entreabrir sem perceber.
— Quem te deu isso? — disse ele, vendo que a sala de estar estava vazia.
Rafaela sentiu um arrepio.
— A sua avó!
— Você quer dizer... O espírito dela? — perguntou ele, trêmulo.
Ela balançou a cabeça em sinal de afirmação.
— O que quer dizer? — disse o rapaz, analisando os dois objetos.
— É ISSO! — exclamou Rafaela.
A moça correu para o quarto de Guilherme no andar de cima, sem olhar para a cozinha ou para a porta do porão. Guilherme viu os animais todos juntos e correu para cima, atrás dela. Rafaela tirou a lâmpada branca do abajur e encaixou a lâmpada de luz negra no lugar onde ela estava. Ela abriu a carta e letras se revelaram, com tinta que brilhava somente na presença daquela luz e se sobrepunha sobre as letras de grafite.
"Escrevo aqui uma ajuda para derrotarem o demônio que vêm me perturbando há semanas. Existe um quarto chamado câmara vermelha aqui nesta casa, ela fica atrás de uma cristaleira velha no porão, e eu marquei a entrada com tinta vermelha. Querido Guilherme, percebi que você é o único da família que tem a capacidade de derrotar essa entidade, pois herdou a minha sensitividade. Pegue a caixa e coloque no quarto, fechada, e faça um círculo de sal em volta dela, se precisar jogue sal em cima da caixa também. A câmara não pode ser aberta por dentro e está protegida com coisas que não é preciso citar aqui. Feche a porta, coloque a cristaleira no mesmo lugar e saia do porão o mais rápido possível. Obrigado e boa sorte!"
Nesse exato momento, houve uma explosão na cozinha que tremeu toda a casa assim como um terremoto faria. Os dois se olharam, pegaram as armas embaixo da cama e desceram as escadas correndo. O fogão e o bujão de gás haviam explodido e, consequentemente, a porta do porão e a parede quebraram em pedaços.
Ana estava parada na frente de onde antes ficava a porta do porão, com os cabelos desgrenhados e a cabeça baixa. Ela levantou a cabeça com dificuldade e foi possível ouvir seus ossos estalando, como se estivesse sendo usada como um fantoche. Ela tinha olheiras roxas, olhos amarelos e dentes pontudos que se exibiam em um sorriso falso e malicioso.
Rafaela abriu o cartucho da Magnum, tirou as balas de ferro e substituiu-as pelas de sal. Ana se aproximava lentamente com os ossos estalando e quebrando e com o mesmo sorriso malévolo.
Guilherme fez o mesmo que a garota e juntos eles atiraram várias vezes contra a entidade, e foi quando o que quer que fosse aquilo, foi empurrado contra a parede e ficou preso. De repente, a imagem da avó se transformou em uma coisa horrenda. Ela ficou gorda e enorme, os braços e as pernas se alongaram, brotaram chifres na cabeça e asas de morcego nas costas. A cabeça era alongada como o gorro de um duende a pele daquilo era negra, tão preta que dava a impressão de que a luz não chegava até ele.
— Nigaka! — sussurrou Guilherme.
O demônio se encolheu. Um tipo de fogo frio brotou por todo o seu corpo. Ele mexeu as longas mãos e derrubou a mesa em cima deles, a parede explodiu. Guilherme sentiu uma dor lancinante no braço, onde uma perna da mesa o acertou.
Napoleão gritava com ele, Tigresa chiava raivosamente, Luna voava em círculos e Furacão relinchava, batendo os cascos no chão.
— Ele tem medo da coragem! — gritou Rafaela — E também de que saibam quem ele é, isso o enfraquece.
Guilherme tropeçou para trás, caiu no chão contra a parede do lado da escada (a única intacta) e atirou várias vezes contra Nigaka.
— Vocês não podem me deter! — berrou Luna, com uma voz grave e estrondosa — Estou com a sua avó, e ela vai pagar por tudo que ela fez contra mim!
Era para isso que Luna servia. Ela era um meio de comunicação entre as entidades e os humanos.
— ACHAM QUE COM CORAGEM VÃO ME DETER? — explodiu Luna, com a voz estrondosa — PRECISAM MAIS DO QUE ISSO! Eu estou com Ana, e a vagabunda está queimando no inferno!
Rafaela molhou o braço na torneira da pia lentamente, correu para o porão e voltou com o braço branco.
Ela enfiou o braço dentro do saco de sal, e o molhou antes para que a substância aderisse melhor.
Guilherme atirava sem parar contra o demônio e recarregava a pistola a cada dez segundos.
Nigaka viu a moça subindo as escadas do porão com fúria nos olhos. Furacão entrou na frente da moça e olhou seriamente para a entidade. Napoleão latia, Tigresa chiava e Luna pousou em seu balanço.
— Eu não tenho medo de você, NIGAKA!
Ao dizer isso, o demônio se encolheu novamente. Rafaela socou-o tantas vezes que seu punho chegou a sangrar. Guilherme se levantou, correu para o porão, pegou a caixa e subiu as escadas para a cozinha.
O demônio entrou na caixa aberta obedientemente e a mesma foi fechada.
[...]
Guilherme colocou a cristaleira onde estava anteriormente. O baú foi colocado dentro da câmara vermelha, um quarto desta cor, com runas e símbolos desenhados com tinta branca por toda parte.
Melissa apareceu à porta.
— Eu ouvi gritos, tiros e barulhos aqui... O que está acontecendo? — disse ela.
— Ah, nada de mais. — respondeu Rafaela, escondendo o punho machucado e arrumando os cabelos molhados de suor.
Guilherme levantou as sobrancelhas.
— Eu preciso fazer uma comunicação com a minha falecida avó. Tem como?
A menina pensou, sorriu e disse que sim.
Ela entrou na casa, observou toda aquela destruição e fez uma iniciação. Gui estava deitado no sofá por ordem de Melissa e com um toque dela, dormiu.
Guilherme piscou e, em um segundo, estava em um lugar sem fim. Tudo era branco, até o chão. Mas não tinha fim, só o chão existia.
Uma mulher caminhava na direção dele ao longe, Guilherme reconheceu como sua avó e correu desesperadamente.
— VOVÓ! VOVÓ!
Ela o recebeu com um abraço quente. Ela não estava mais feia como antes, mas sim intacta e linda. Ela sorriu.
— Tudo bem com você? Você conseguiu? — disse ela, brandamente.
O rapaz fez que sim com a cabeça e uma lágrima escorreu abaixo de seus olhos.
Eles se abraçaram de novo. Agora começaram a andar, sem rumo.
— Por que Nigaka não conseguia nos ferir diretamente, conversar diretamente ou aparecer diretamente? - perguntou Gui.
— Porque os demônios não podem agir diretamente sobre os seres vivos. Por isso ele usava o meu espírito para se aproximar de vocês.
— E por que ele nos escolheu?
— Ele estava com fome, na verdade. Queria se alimentar de almas saudáveis e jovens, é isso que os demônios fazem.
— E foi ele quem te matou?
— Provavelmente. Eu só lembro de uma espingarda flutuando e me atingindo na barriga.
— E por que você não deu a pista da câmara vermelha logo de cara?
— Porque Nigaka estava me observando há muito tempo. Ele sabia tudo que eu fazia. Mas ele foi burro, nem desconfiou da escrita invisível... O que importa é que você conseguiu!
— Obrigado, vovó.
Com um piscar de olhos, Guilherme acordou e estava novamente em sua sala, deitado no sofá.
Apenas Melissa estava o observando. Ela disse que Rafaela acabara de ligar para a emergência, por causa dos machucados sofridos.
O rapaz viu luzes de ambulâncias pelas janelas. Ele foi para fora e viu os animais enfaixados, Rafaela sendo cuidada no punho. Alguns médicos viram o rapaz e correram para ele. Só agora foi perceber que seu braço estava realmente quebrado.
Tudo estava bem de novo.
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Os Guardiões de Ana Nogueira ✔
KurzgeschichtenCom a inesperada morte de Ana Nogueira, seu neto Guilherme herda a casa grande no campo. A avó deixou tudo que tinha para o neto, inclusive os seus animais de estimação, um gato, um cachorro, um cavalo e um papagaio. Cada um destes animais, os guard...