Capítulo 4 - Toc-Toc.

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      Nada aconteceu durante a noite, além do jantar. Rafaela permaneceu na casa, Guilherme repôs as rações de Tigresa, Napoleão, Luna e Furacão, e os dois subiram para o quarto para dormir.

      A noite ia bem, bem demais.

      As cortinas abertas revelavam uma noite um tanto clara, com o brilho prateado da lua movendo-se pelos gramados e folhas dos carvalhos que balançavam com a brisa. As corujas cantarolavam aprumadas nos fios de luz e os grilos vocalizavam orquestras por toda a cidade e fora dela.

      O silêncio daquela noite foi interrompido por batidas. Batidas que vinham do antigo quarto da falecida Ana Nogueira, vó de Guilherme. Mas dessa vez não eram murros, socos ou estrondos violentos, e sim batidas pacientes e demoradas.

      — O que foi isso? — sussurrou Rafaela, puxando a coberta para a altura do pescoço.

      Guilherme fez uma pausa, e nesse meio tempo nada foi ouvido senão o farfalhar das árvores, o cantarolar das corujas e dos grilos. O rapaz levantou a sobrancelha.

      — A casa é velha... — começou — Toda casa antiga faz esses barulhos.

      — Eu sei o que eu ouvi.

      Arrumando os cabelos para trás, Rafaela bateu na parede às suas costas algumas vezes no ritmo de uma música. As batidas do outro lado completaram o ritmo perfeitamente.

      Aquela mesma risada esganiçada de Luna varou os corredores da casa, correndo pelas paredes. Os pelos da nuca de Gui se eriçaram e Rafaela levantou e pegou a camiseta do namorado no chão, vestiu-a e andou pelo corredor até o quarto de Ana.

      Abrindo a porta, não havia nada além de um vulto preto pouco visível em um espelho no fundo do quarto. Era como se estivesse alguém invisível se admirando, mas que só aparecesse o reflexo, ao contrário dos vampiros. Sua cabeça era estendida como o chapéu de um duende e era mais negro que o céu nanquim.

      Rafaela soltou um grito de medo e caiu para trás, batendo o braço na moldura da porta. Guilherme, que esperava na cama, ouviu o grito e o barulho, então saltou da cama e correu. A moça estava deitada no chão, rolando de dor e com cara de quem chupa um limão.

       Ajudando-a a se levantar, perguntou o que acontecera.

      — Eu vi um... Um vulto no espelho! — disse ela, fixando o objeto com os olhos arregalados e cheios de lágrimas.

      Guilherme entrou no quarto e viu um mancebo com muitos braços e em um deles estava pendurado um sobretudo escuro. Ele apontou para a peça de roupa, que ficava diretamente na frente do espelho. A moça limpou as lágrimas com as costas das mãos e negou com a cabeça, só ela sabia o que tinha visto realmente.

      Nesse exato momento, a porta se fechou com força, como se uma ventania se criasse do nada e fechasse-a.

      A maçaneta redonda estava sendo segurada como se uma criança estivesse do outro lado, tentando prender Gui. O rapaz forçou a maçaneta para o outro lado e puxou a porta.

      Rafaela estava escorada na parede do corredor, com as mãos na boca contendo um grito de horror. Quando ele abriu a porta e respirou fundo, a moça fitou algo em cima de seu trapézio e arregalou os olhos mais do que já estavam e soltou um grito mudo.

      O rapaz se arrepiou novamente e olhou por cima do ombro, mas não tinha nada.

      Ele agarrou a mão dela, puxou para o quarto e fechou a porta.

      — O que você viu?

      Ela se sentou na cama e fechou os olhos, tentando respirar fundo, mas o ar entrava e saía muito rápido.

      — No espelho era como um duende grande e forte, todo negro. — ela respirou fundo, as mãos tremendo — E atrás de você era... A Ana!

      — A minha avó? — sussurrou o rapaz.

      Balançando a cabeça para cima e para baixo, ela confirmou. O ruivo disse um "o.k." para si mesmo, se agachou ao lado da cama e enfiou a mão por baixo dela, puxou duas pistolas e escondeu-as sob os travesseiros.

[...]

      Ângela puxou ar com força e colocou a mão no coração, se sentando na cama, acabando de acordar de um sonho com Guilherme, seu filho.

Pedro acordou e esfregou os olhos. Os dois desceram para a cozinha para tomar um chá calmante que só o marido sabia fazer, porque a esposa tremia toda e não conseguia mais dormir.

      — Eu estou dizendo! — afirmou, com a voz trêmula — Alguma coisa está para acontecer...

      — Se acalme. Guilherme sabe como sair de uma situação dessas, ele já tem vinte anos. — disse Pedro, coçando a barba escura e ajeitando os óculos.

      Ângela negou com a cabeça. Com as mãos tremelicando, pegou o bule que o marido havia posto em cima da mesa e encheu a xícara e tomou em pequenos goles.

      Pedro observou que o relógio da sala marcava quase quatro horas. Ele disse que subiria para cochilar, já que dali a três horas sairia para trabalhar em sua loja de armas e balas.

[...]

      Passos ecoavam pelo corredor. Passos mais pesados que os de Napoleão. Parecia mais que uma pessoa estava andando por ali

      Guilherme nem Rafaela conseguiram dormir. O rapaz levantou da cama, pegou a 357 Magnum debaixo de seu travesseiro e abriu a porta do quarto. Sentiu Rafa vir atrás dele e ouviu o barulho dela pegando a pistola e arrumando em suas mãos.

      Algo descia as escadas. Uma mulher velha. Era Ana.

      Gui fitou-a e percebeu que era uma armadilha, mas mesmo assim foi atrás. Quando chegou à escada, Ana já estava atravessando a porta do porão e a fechando. Antes de fechar, empurrou uma caixinha para fora.

      A imagem da avó estava fraca e translúcida, como se não conseguisse aparecer por completo. Sua aparência estava acabada para completar a situação.

      Luna, aprumada em seu balanço, escancarou o bico e emitiu uma gargalhada fantasmagórica, esganiçada e grave, como se algo a usasse para projetar a sua voz: algo como um walkie talkie.

      Tigresa e Napoleão acordaram na caixa de serragem embaixo do balanço e Furacão batia sua cabeça na janela.

      De dentro da caixinha saiu uma gosma verde que começou a tomar conta de parte do piso da cozinha. E atrás da porta do porão encostada, batidas na porta eram ouvidas, assim como as na parede anteriormente. Calmas e pacientes.





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