Após meia – hora, estamos no grande centro comercial de Seul. Foi inaugurado há alguns anos, no mesmo ano que os grandes países da Ásia e o resto do mundo foi separado em monarquias. Continentes para Reis, países para Príncipes e Princesas regentes.
Como Daniel...
O centro é dividido em duas seções: a ala Deluxe, que é praticamente um grande shopping de luxo que dispõe de vários andares – comprei meu vestido nas lojas do térreo – e a ala popular, onde vendem coisas simples, baratas e até falsificadas, que podiam ser adquiridas com poucos wons. Apesar disso, a ala comercial não é um lugar feito apenas para a ralé. Até mesmo nós, ricos e nobres, passamos aqui sempre para comprar coisas pequenas, divertidas e até comer. A Ala Deluxe, com seus prédios altos, faz um círculo envolvendo a ala popular. Porém, o teto do lugar sempre foi o céu.
O calor exige que eu tome um sorvete de morango. Sheevey está parado ao meu lado, em pé, como se estivesse me guardando.
Lambo as laterais da segunda bola de sorvete e suspiro, cansando dessa pose dele.
- Sente-se, Sheevey.
Ele lança um olhar desconfiado, porém se senta, mantendo a postura ereta.
- Quer sorvete? – aponto minha casquinha para ele.
Seus olhos quase saltam das órbitas. Com certeza por que não é nada normal que uma pessoa ofereça comida para seu andróide.
- Eu... não como.
- Oh... – puxo meu sorvete de volta para a minha boca.
Ele dá uma risada leve.
- Quer dizer... eu como. Mas não posso comer o que você me oferece. Não seria... apropriado. – Ele abaixa a cabeça.
- Bom, sendo eu sua chefe, digo para que coma – concluo, apontando para ele minha casquinha, outra vez.
Um sorriso tímido nasce como o Sol da manhã em seu rosto, revelando seus dentes brancos como pérolas de um tesouro perdido. Meu coração para por um momento, quando seus dedos tocam os meus, pegando a casquinha para si. Ele a lambe, ainda muito tímido.
- Então, fez as tais pesquisas sobre como eu posso impressionar o príncipe? – pergunto, após um longo momento de silêncio. – Você pediu meia-hora para processar e... Essa meia hora já passou.
Sheevey franze o cenho. Coisas mínimas como isso me deixam chocada. Como ele pode ser tão humano?
- Creio que... uma abordagem mais estratégica e pessoal seja mais eficaz.
- Hum, o que quer dizer?
Ele morde a casquinha e eu me vejo hipnotizada nisso por alguns instantes eternos. Mordo o lábio e estalo as juntas dos meus dedos.
- Fiz algumas pesquisas a respeito do príncipe e como será o baile. O príncipe tem 21 anos, não sai muito de casa, mas já expôs um pouco dos seus gostos em uma revista britânica. Ele gosta de garotas loiras.
- Um ponto a menos para mim – resmungo, concentrando minha mente no meu cabelo escuro.
- Seu esporte preferido é natação.
- Não sei nadar.
- Sua comida favorita é bolo de carne.
- Não gosto de bolo e sou vegetariana. Sheevey, isso só piorou tudo. Além das nossas diferenças culturais serem gritantes, o que eu poderia ter em comum com ele eu não tenho. – Passo as mãos pelos meus cabelos e tento tirar uma manchinha de sorvete da calça. – O que eu farei? Ele escolherá seu dote neste baile e... Eu sequer estou na lista da nobreza considerável. Preciso me aproximar dele, mas como?
- Ele também gosta de estudar nanotecnologia e robótica.
Me levanto, irritada.
- Caso não tenha notado, eu não sou a pessoa mais inteligente do mundo, Sheevey. Não entendo nada disso. Sequer consegui tirar nota boa em matemática, mês passado. Daniel é um príncipe de vinte e um anos, formado em diversos cursos. Ele é culto. Eu sou só uma pirralha de dezessete.
Sheevey nega, um pouco divertido.
- Eu tenho uma rede infinita na mente. Tenho acesso ilimitado ao que eu quiser saber neste mundo.
- Você, não eu – vocifero.
- Deixe-me terminar, senhorita Lee. – Ele levanta as mãos e eu o permito continuar, apesar da leve insolência – Hoje é segunda. Temos até sábado para que eu lhe ensine algumas coisas. E temos uma carta na manga.
- Que seria?
Ele aponta para si mesmo.
- Eu. Na Europa Imperial, existem no máximo três androides do tipo sintéticos, e são usados para operações de espionagem no governo. Apesar de o príncipe Daniel estar em elevado cargo, nunca na vida viu um. Ele disse, em certa entrevista, que adoraria poder tocar em um e... analisar seus sistemas e funções.
- Vai deixar o príncipe brincar de explorador com a sua cabeça? – brinco.
Ele morde o último pedaço da casquinha e ri, olhando para sua marca, que nasce do pulso e sobe até a divisão entre braço e o antebraço.
- Faço o que é preciso para deixar meus mestres felizes.
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- Soon Ni, Soon Ni! Venha ver meu vestido!
Moon Ni me puxa para seu quarto, extasiada com a encomenda que chegou. Ela e Si Ni estão totalmente ansiosas pelo baile. O príncipe Daniel sempre foi uma espécie de ídolo teen para as minhas irmãs. Apesar de eu buscar seu reconhecimento tão incessantemente, nunca fui tão fã dele assim. Faço o que faço pela minha mãe. Sou sua filha mais velha, e como filha mais velha, tenho que garantir nosso futuro. Não trabalhando, ou estudando..., mas me casando com alguém importante.
Deixo-me ser arrastada por Moon Ni até seu quarto de boneca. Pendurado em seu guarda-roupas perolado, está um dos vestidos mais belos que já vi. Azul claro, com a saia comprida em formato de uma pétala gigante e um corpete desenhado por rendas em flores.
- Você que escolheu?
- Não – ela diz, com a voz irritantemente aguda -, mamãe que escolheu. Diga se não é lindo, Soon Ni.
Deixo meus dedos correrem pelo tecido fofo e uma pontada de inveja faz o meu nariz coçar. Se minha mãe me queria deslumbrante, porque não comprou algo do tipo para mim?
"Porque você já é uma moça feita. E como moça feita, deve fazer suas próprias escolhas", a voz da minha mãe canta nos fundos da minha mente. Muitas vezes a minha consciência fala usando a voz dela emprestada. Não sei se isso é bom, só sei que minha consciência é injusta ao fazer isto.
Eu ainda não tenho um vestido.
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Minha mãe trabalha demais. Ou de menos, ainda não decidi. Aqui, o sistema é dividido em monarquias, como o resto do mundo, e minha mãe é uma das principais duquesas diplomatas da Ásia-Oceania. Quase sempre está em viagens, mas faz questão de conversar conosco todo dia pela internet. Foi assim que ela praticamente me exigiu que eu usasse meus dotes diplomáticos – herdados dela – para tentar furar a lista da Nobreza Considerável – lista a qual eu não estou, mesmo com o cargo de minha mãe e a menção de honra militar do meu falecido pai.
Não sei como eu farei isso, mas tenho de fazer. Por isso estou aceitando as aulas de Sheevey, apesar de serem inúteis na minha cabeça.
Estamos na sacada do meu quarto, diante uma mesa cheia de livros e um projetor de slides mirado na parede branca da minha casa.
Quem diria que precisaria estudar tanto para casar.
Sheevey explica sobre como funciona o sistema Avalon, um dos sistemas operacionais mais sofisticados da atualidade, que eram instalados nos androides. Já havia explicado como funcionam as placas-mães de cada tipo de androide, inclusive os sintéticos, e a velocidade de cada processador. O seu processador é, com toda a certeza, o mais rápido de todos os tipos.
No início, a aula estava até agradável, mas com o passar do tempo e com a aurora batendo alaranjada em meu rosto, começo a pender a cabeça para lá e para cá, esbofeteada pelo sono. O toque quente de Sheevey em meu ombro me sobressalta e ele se encolhe.
- Desculpe, senhorita Lee. Você parece cansada. Deveria ir para cama.
Esfrego minhas têmporas e solto um bocejo, confirmando suas palavras.
- Não precisa me chamar de "senhorita Lee" o tempo todo, Sheevey.
Ele arqueia as sobrancelhas.
- E como devo lhe chamar? Lee Soon Ni? Soon Ni me parece um tanto informal e...
- Sun.
- Sun? – O jeito que ele fala, me deixa incomodada. Incomodada por gostar.
- Sim. Sun é meu apelido e a forma que me faz sentir-me bem.
- Bom – ele parece desconfortável – Sun não me parece a melhor forma de...
- Me chame de Sun, Sheevey. É uma ordem.
- Ok, senhorita Su...
- Nada de senhorita. Só Sun – ordeno, com um sorriso.
Ele demora um tempo, mas sorri também.
- Ok... Sun. Acho que deveria dormir. Amanhã estudamos mais.
Chega, estou farta. Com muita paciência, mas ainda áspera, deixo lamentos correrem pelos meus lábios.
- Sheevey, realmente não sei o porquê de tudo isso. Olhe eu... não sou inteligente – sorrio, com tristeza ardendo em meus olhos –, não sou nem uma boa pessoa. Olhe, Moon Ni é adorável e Si Ni é inteligente. Minha mãe é inteligente e adorável. Eu não passo da garota automática que segue tudo o que elas dizem. Sou mais robótica que você, Sheevey.
Ele olha para as folhas em cima de mesa. Um tapa imaginário é dado em minha cara, quando peso o que acabei de dizer.
- Me desculpe, Sheevey. Não falei por mal.
Surpreendentemente ele ri, arrasta uma cadeira e se senta ao meu lado.
Tão humano...
- Sun – não me acostumo com meu apelido saindo de seus lábios -, me desculpe, mas não concordo com nada do que você diz. Estou aqui há quase sete meses e você... de todas as mulheres que vivem nessa casa... de todos no complexo nobre é a mais autêntica.
Dou um riso sem humor.
- Claro, você diz isso porque sou sua dona.
Ele pressiona os lábios um contra o outro em um sorriso e estala a língua.
-Hum... acho que não fui programado para mentir.Sorrio com ele mesmo sabendo que meu sorriso jamais seria tão lindo quanto.
- Você tem um jeito diferenciado. Até na aparência. Seu cabelo é muito bonito e... – Ele parece se arrepender do que diz e esfrega as têmporas. Minha bochecha está formigando – O fato é que você é a única que me trata como uma pessoa de verdade.
- Eu vivo te maltratando, Sheevey, como pode dizer isso?
Ele olha bem para os meus olhos e, por um momento, acho que toda a atividade do meu corpo irá parar. Como um apagão.
- Porque eu vejo nos seus olhos que você não me vê como uma pilha de sucata.
Busco em minha mente se há motivos para ele afirmar isso. Eu sempre o mantenho por perto. Ultimamente, ando o considerando mais como um amigo do que tudo. Quero me desesperar quando concluo que, de todas as pessoas na casa, ele é com quem eu mais passo meu tempo. Isso deveria ser normal se, durante todo esse tempo, eu não ficasse encabulada com sua presença. Ou se eu não o achasse tão bonito. Apesar do silêncio entre nós sempre ser maior, o tempo de convivência nos deu uma espécie de interação não verbal.
Não verbal até agora.
Não quero admitir a estranheza de tudo isso. Mas tudo fica mais estranho, quando percebo sua mão enroscada na minha e seu rosto tão próximo ao meu.Dou um pulo trás, derrubando minha cadeira.
- O que?
Ele se levanta, agitado e horrorizado, como se tivesse ferido um animalzinho indefeso.
- Eu... eu vou cuidar dos preparativos para o baile. Com licença, senhorita Lee.
Eu quero impedi-lo de sair. Dizer que não me importo com o fato de sermos próximos, mas uma pergunta me prende à sacada: que tipo de inteligência artificial poderia fazer meu coração bater neste ritmo?
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Coroas de Lata - Sintético |Conto1|
NouvellesPrimeiro conto da série Coroas de Lata. Segundo conto: Sinópticos - disponível no perfil da @LynnKeffy A vida de Sun Lee sempre foi um mar de rosas. Viver na nobreza da Ásia-Oceania sempre lhe permitiu isso. Mas quando o Príncipe Daniel, da Europa I...