Caminhos Para o Fim

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O que havia começado como um dia qualquer terminaria do mesmo modo, se minha curiosidade não houvesse falado mais alto. Talvez tenha sido o fardo da rotina que, corroendo-me aos poucos, fazia nascer a ânsia de algo mais. Ou talvez tenha sido apenas o destino.


O fato é que, a partir de um momento, todos os dias parecem iguais quando se passa anos na mesma rotina. A coisa toda se intensifica se não lhe sobrou nenhum familiar ou amigo. A consciência vai o abandonando aos poucos, até que não lhe importa mais o que você sonhava em fazer, tinha vontade de comer ou sentisse falta. Sua vida é se levantar, trabalhar, voltar para casa e dormir.

Repita este ciclo por pelo menos sete anos e você começará a me entender.

Foi no final deste mesmo dia em que tudo isto se rompeu. Minha jornada de trabalho estava completa, meu estômago suplicava por qualquer coisa. No fim das contas, tudo acaba adquirindo o mesmo gosto quando se vive assim. Entretanto, qualquer lugar em que pudesse comprar algo já havia fechado horas atrás. A madrugada começava e eu percorreria o caminho até minha casa com a barriga vazia.

As lembranças do caminho agora se misturam em minha mente. Mas havia o vento gelado do outono. Voando com ele, folhas mortas rodavam pela praça. E no chão, deslocado de toda natureza morta daquele lugar, havia um parco brilho.

Não havia razão aparente para aquilo ter chamado minha atenção. Poderia ser apenas alguma pedra ou uma mísera moeda. Pelo menos, foi o que pensei inicialmente.

A luz azulada que o misterioso objeto emitia atraiu minha total atenção no momento em que coloquei meus olhos nela. Ele fazia com que meus pensamentos atravessassem lentamente por minha cabeça; o incômodo da fome já não era tão grande.

Eu precisava me aproximar mais daquilo. Meu corpo quase agia forçadamente para isso. Só agora começo a entender que sua influência sobre mim começou naquele momento.

Era uma pequena lente circular. Se assemelhava muito a de um monóculo, mas em seu centro, um diminuto octaedro sobressaltava-se do cristal. Não creio, de forma alguma, que aquilo fosse um vidro qualquer. Era de azul fluorescente que permanecia gravado na visão, mesmo ao se fechar os olhos.

Olhando diretamente para ela, notava-se que a luz que emitia provavelmente era causada pelo reflexo na lente. Não possuía brilho próprio, embora eu possa jurar tê-la visto bilhar várias vezes quando não olhava diretamente para a peça.

Ao levantá-la contra a luz do poste, a fim de analisar melhor a lente, notei que o que via através dela era uma imagem retorcida demais da paisagem em minha frente. Sombras cruzavam a luz do poste através da lente, fazendo-me abaixar por puro reflexo. O grasnar e o bater de asas me fizeram acreditar que fossem apenas os pássaros da noite, embora o que vi através da lente fosse mais sinistro que apenas pássaros. Era ilógico ter visto a destruição da praça a minha frente. As árvores retorcidas e sem folhas estavam quebradas ou inclinadas, quase se desfazendo em pó. O chão de pedra era irregular e trincado, com fendas subindo pelas pequenas estátuas que estavam distribuídas pelo lugar.

É claro que, no momento, eu pude jurar que fora apenas minha imaginação.

Mais estranho que tudo isso foi a visão dos corvos. Ao apontá-la em direção às aves, eu as vi em várias formas de uma só vez. Eram feitas de sombras, ossos expostos e bicos deformados. Vi em cada corvo, mais três ocupando o mesmo espaço. Quase como se fossem translúcidos.

O coração, sem emoção alguma por tantos anos, agora estava disparado e o medo se apossava de mim.

Corri o máximo que pude, sem olhar para trás. Atravessei a praça apertando o objeto em minha mão como se minha vida dependesse disso. Entretanto, eu já não era um jovem havia muito tempo e, já estando com quase cinquenta anos, meu corpo não aguentou manter a corrida por tanto tempo. Já na segunda esquina depois da praça, meu peito ardia e minha boca estava áspera de tão seca. Conferindo que a lente ainda continuava em minha mão, me escondi em um beco e esperei.

Caminhos Para o Fim - ContosOnde histórias criam vida. Descubra agora