Pedaços De Papel

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Uma ligação e nada de palavras, só sussurros sem nexo que muito se assemelham a um embrião de choro. Como numa trágica reportagem ao vivo sobre algum astro do Rock, há alguém morto na casa. O copo com as sobras da substância mortal ainda jaz sobre a mesa. Encerrada a chamada, Amador se põe a caminho com a certeza de que algo ruim aconteceu. "Somos tão fracos às vezes, tão fracos..." Uma olhada para o lado, outra para cima; uma reflexão com os olhos fixos no gesso branco do teto. Luzia se depara com a situação mais alarmante para um ser humano: não encontrar respostas para nenhuma de suas indagações íntimas. Ao longe, um baruho de campainha a desperta para a vida - e para o choro -; com lágrimas Luzia abre a porta.

- O que aconteceu, Luzia? - Amador pergunta, segurando a mulher pelos cotovelos e a sacudindo com vigor. Luzia não tem palavras, apenas lágrimas. Só quer um abraço, ou um pó mágico que a transporte para uma realidade menos amarga.

- Luzia, o que aconteceu? - desesperado, Amador torna a questionar. Ela não responde, é agora como Dédalo, mantém-se ocupada a construir asas para escapar do maldito labirinto. "Mas isso é tolice, Luzia, porque Ícaro morre."

Seus olhos se fecham, o peito aperta; somente um suspiro a defende da agonia total. Não o amava, mas... que culpa tinha em não amá-lo? Não sabia como aprender a amar! E talvez fosse impossível aprender. "Somos mesquinhos. E acomodados." E o choro, seria verdadeiro? Estaria chorando por ele, ou por não ter conseguido amá-lo? Mais duas indagações íntimas sem resposta.

A cabeça tonteada não a impede de seguir seu rumo, Luzia queima numa febre de gelo, com a temperatura de um cadáver - ainda mais fria que seu filho morto. Sente-se livre, solta no ar como uma bailarina louca, embriagada pelo teor de fantasia maligna que há nas piruetas que outra bailarina, chamada vida, dá. É Amador que a liberta! Nem toda liberdade é boa. Luzia cai, o chão a abraça, mas não a conforta.

Normalmente um trinco aberto jamais traria tanta tristeza. A porta se abre, o corpo fica à mostra e em seguida Amador - assustado e inconformado - junta-se a Luzia na valsa do choro. Cena que se repete, como um VT, na mente de todos os que nela puserem os olhos: Josué está morto. Matou, morreu; se matou. O odor desconfortável de veneno é a fragrância que preenche o ambiente.

Amador regressa à porta, e com um abraço tenta dizer para Luzia que também é dono de um pedaço daquela dor.

- Ele se... matou!... - ela cochicha, trêmula, como se o que acabara de dizer não pudesse, de forma alguma, ser ouvido por Deus. As pessoas começam a chegar, e nem precisam apertar a campainha - a porta escancarada as convida para o prestígio da dor. Uma mãe chora na sala, amaparada apenas pelo olhar de piedade dos vizinhos que, com o silêncio, a consolam; um corpo esfria no quarto; mil pesares vagam sobre um único lar.

Luzia se exalta, torna-se necessário o uso de calmantes. Ela dorme - como morta - sem sonhar. O barulho de passos aumenta com a chegada de mais pessoas, nunca houve tantas na casa. O tempo escorre na cachoeira da vida. A despedida final está pronta!

- Um maluco... - um sibila baixinho, temendo ser ouvido.

- Esse não vai pro céu! - outro cochicha.

Luzia desperta - um pouco mais conformada graças ao calmante - e soluça baixinho, tanto que seu soluço não atrapalha em nada a oração do padre. De sapatos engraxados, terno preto impecável, barba feita e cabelo penteado, Josué está um mimo, esteja onde estiver: descansando na Mansão dos Mortos ou sofrendo no Inferno, se é que este existe. Amador já não sente mais necessidade de interrogar, parece saber de tudo; é só padrasto, mas também sofre. Viver é, principalmente, sofrer. "Não há retorno, não para isso."

O caixão desce na cova sem cerimônia, como se já estivesse habituado a tal exercício. Josué não consegue ver, mas, certamente a chuva de flores em seu velório é bela. Os olhos de Luzia só podem mesmo ser comparados com uma torneira quebrada, pois dali, em forma de lágrima, muita dor continua saindo. A terra, faminta que a tudo devora, se impregna no esquife como se dissesse: meu almoço!

Finda-se o funeral, e os adultos voltam para casa preocupados, procurando em suas crianças e adolescentes vestígios de suícida. "O que a falta de amor não nos faz fazer?..."

O sol, apressado, tenta se esconder, como que por vergonha de ser a estrela que aquece o planeta onde alguns homens matam aos outros e a si mesmos. Anoitece rápido, o vento que sopra folhas torna-se um sócio da escuridão. Luzia entra no quarto, não no dela: no de Josué. Encontra a cama desarrumada, a luminária acesa, o criado-mudo de gavetas remexidas, o pé esquerdo de um tenis sobre o teclado do computador - bagunça normal de adolescente. No chão ainda sujo de sangue e vômito, se destacam pequenos pedaços de papel cuidadosamente rasgados. "Uma boa apresentação também depende de um bom cenário."

Agachada, Luzia põe-se a juntar os papéis, como se aquilo fosse um quebra-cabeça. Josué escrevera algo ali. Mexe de um jeito, revira de outro; o quebra-cabeça se une. No mesmo, em letras grossas e amarguradas, encontra-se escrita a seguinte frase:

MINHA MÃE NÃO ME AMA!

Finalizada a leitura, Luzia chora, e muito. Pois é verdade, e ela sabe. Não há como modificar verdades.

Pedaços De Papel - ContosOnde histórias criam vida. Descubra agora